sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Naturalidade de Fernão de Magalhães

Por: Susy Almeida

Introdução

Fernão de Magalhães é a personagem histórica que mais polémica tem causado entre os cientistas. Todos eles estão de acordo relativamente à importância do seu feito em vida e ao modo como foi concretizada a primeira circum-navegação em torno do globo, ajudando para isso o diário de Pigaffeta, um dos tripulantes que acompanhou Magalhães na expedição, porém, os documentos existentes relativamente à naturalidade do nosso compatriota criam várias discórdias visto que nada nos dizem em concreto.
São várias as hipóteses levantadas sobre a sua naturalidade, sendo Sabrosa, Porto e Ponte da Barca, os locais mais referidos como sendo o berço de Magalhães. Os argumentos utilizados pelos investigadores vão muitas vezes ao encontro dos desejos dos próprios pesquisadores ou dos governadores das localidades referidas anteriormente.
Sabrosa é uma das localidades que mais se tem afirmado como sendo o berço de Magalhães e, apesar dos investigadores de renome afirmarem e provarem o contrário, José Marques, Presidente da Câmara Municipal de Sabrosa (CMS), recusa-se a aceitar as teorias que caracterizam os testamentos, utilizados para associar Magalhães ao concelho de Sabrosa, de incongruentes. Assim, os menos informados, face aos eventos realizados para homenagear Fernão de Magalhães, definido por eles como um filho da terra, acreditam que Sabrosa é mesmo a “Terra de Fernão de Magalhães”.
Esta falácia tem sido criticada pelos investigadores que procuram defender a verdade, como foi o caso de Amandio Barros (2009). Este, tendo iniciado uma investigação financiada pela CMS, acabou por se confrontar com documentos históricos que o direccionavam para Ponte da Barca. Face a isto, rompeu o compromisso com a dita câmara visto que as suas descobertas não iam ao encontro das expectativas dos seus financiadores.
Estas discórdias continuarão a ocorrer até ao dia em que se encontre um documento, redigido por Fernão de Magalhães, em que este refira o seu local de nascimento e não o local de onde se diz ser “vizinho”, palavra essa que tem originado a defesa da cidade do Porto como berço de Magalhães.
Esta investigação não surge somente com o intuito de promover uma reflexão acerca da naturalidade do investigador mas também para aviventar uma análise antropológica da primeira circum-navegação em torno do globo. Este foi um dos feitos mais notáveis da história pois, para além de vir a comprovar a esfericidade do planeta, marcou o inicio do conhecimento global da Terra, quer seja a nível geográfico quer seja a nível sociocultural, visto que ao longo desta viagem foram vários os povos com quem a tripulação de Magalhães teve contacto.
O nome Fernão de Magalhães, tem uma conotação extremamente poderosa pois, no decorrer da vida deste navegador, apesar da sua nacionalidade portuguesa, conseguiu credibilidade, por parte do monarca espanhol, para liderar esta expedição. Actualmente, passados quase 500 anos da sua morte, Magalhães continua a ser uma figura deveras influente, visto que o uso do seu nome tem um grande impacto turístico. Por conseguinte, as localidades cujos documentos históricos lhes permitem defender a naturalidade de Fernão de Magalhães, usam essa designação até à exaustão. Temos como exemplo o site do Município de Sabrosa que, na página inicial, se designa como “Terra de Fernão de Magalhães”.

1. A naturalidade de Magalhães – Teorias e Fontes Documentais

Quando iniciamos uma análise histórica sobre uma determinada temática, confrontámo-nos com a necessidade de obter documentos factuais que comprovem a veracidade dos mesmos. Lamentavelmente nem todos os investigadores são igualmente rigorosos e muitos deles acabam por interpretar de forma incorrecta os poucos documentos existentes sobre a História em si.
Fonseca (in Geneall, 2009) considera que Fernão de Magalhães, “esta figura ímpar da história portuguesa está envolta em mistério e muitas vezes em ficção que se tenta passar por ciência histórica” sendo exemplo disso a interpretação dada por Ferdinand Denis e seguidamente por Diogo Barros Arana, ao testamento de Magalhães pois, não se apercebendo da falta de autenticidade do documento em si, interpretaram o seu conteúdo de modo incorrecto, defendendo a naturalidade de Magalhães como sendo Sabrosa (Trás-os-Montes).
Este erro, que seguidamente analisaremos de forma mais pormenorizada, contribuiu para que Magalhães fosse colidido a uma terra que nada tem a ver com a sua naturalidade, criando uma falsa associação, quer por parte dos investigadores quer por parte dos turistas, ao concelho transmontano.
Tal como refere Barros (2009), a figura do navegador sempre criou um grande interesse por parte dos vários escritores que, em consonância com as suas limitações intelectuais e profissionais, acabaram por transmitir, de forma romanceada, dados da vida de Fernão de Magalhães que nem sempre se adequam à verdade.

“As liberdades, legítimas, que tornam os romancistas e curiosos da História, para não falar de outras formas de Arte e Cultura, como o Cinema, conduzem a juízos errados, descontextualizados, a interpretações condicionadas pela construção ficcional da trama narrativa, que importa desmistificar.” (Barros, 2009:2)

Certo é que a falta de aprofundamento das investigações e a selecção bibliográfica inadequada nos induzem em erro pois, como refere La Rochefoucauld (s. d.), “há falsidades disfarçadas que simulam tão bem a verdade, que seria um erro pensar que nunca seremos enganados por elas”.
Através deste tópico serão analisados os documentos existentes, directa ou indirectamente, relacionados com Fernão de Magalhães, que poderão ser concludentes ou que poderão ter originado ilações precipitadas.


1.1 – A Herança de Magalhães – Contributo ou entrave para a análise da sua naturalidade?


Apesar de vários autores terem dado por concluídas as suas investigações, afirmando que o nosso argonauta nasceu em determinada localidade, certo é que os documentos conhecidos, lavrados por Fernão de Magalhães e pelos seus “familiares”, nos conduzem a questões hipotéticas e não a certezas indubitáveis, sobre a naturalidade e as ramificações genealógicas da personalidade em análise.
De facto, estas duvidas devem-se em muito ao aparecimento sucessivo de herdeiros ou alegados sucessores de Magalhães que, baseados no decreto redigido pelo Rei de Espanha, onde refere que as mercês concedidas a Magalhães passariam automaticamente para os seus herdeiros, procuraram se identificar, ao longo dos séculos seguintes, como familiares do navegador.
Magalhães redigiu o seu testamento a 24 de Agosto de 1519, antes da sua partida para a viagem que viria a imortalizar o seu nome. Como refere Aranda (1881:8), era usual os navegadores efectuarem os seus testamentos antes de partirem visto que “Eram tantos os perigos destas viagens e das campanhas em que se empenhavam os exploradores e soldados, que todos se preparavam espiritualmente como cristãos ferventes, e dispunham seus bens para o caso de morrerem na empresa”.
Magalhães sabia que se tratava de uma viagem muito perigosa pois, apesar de ter em sua posse mapas de navegação e um globo terrestre, onde traçara a rota a seguir, estava consciente de que a posse desses materiais não era o suficiente para garantir o sucesso da viagem. Como agravante, o facto de não existir na altura um conhecimento aprofundado sobre os seres que povoavam os mares, originava a criação de histórias mitológicas como forma de justificar os barulhos e os movimentos tenebrosos das águas e tal como refere Saavedra (s.d.:20), “no meio de tantas histórias assombrosas e tão pavorosos fantasmas, se não fosse a dourada previsão de enormes riquezas e a promessa de fuga a uma vida, na época, mais que miserável, nunca Fernão de Magalhães teria arranjado marinheiros para a sua temerosa empresa”.
Fernão iniciou a viagem com cerca de duzentos e cinquenta tripulantes, subdivididos em cinco naus, cuja aparência geral era descrita, na carta de Sebastião Alvares para o rei de Portugal, como velha pois, apesar de Dom Carlos ter dado credibilidade ao projecto de Magalhães, por acreditar que este feito poderia-lhe trazer o respeito do povo, poder e muita riqueza, havia um factor que o deixava renitente, o facto de se tratar de um navegador português. Face a isso, cedera o material necessário para que o objectivo de Magalhães fosse cumprido, embora esse não fosse o seu melhor material.

“Senhor, os navios da capitania de Magalhães são cinco, a saber: um de 110 toneladas, os dous de 80 cada um e os dous de 60 cada um, pouco mais ou menos.
São mui velhos e remendados, porque os vi em monte correger. Há onze meses que se corregeram e estão na água. Agora calafetam assim na água. Eu entrei neles algumas vezes e certifico a vossa alteza que pera Canária [s] navegaria de má vontade neles, porque seus liames são de sebe.
Artilharia que todos cinco levam são 80 tiros, mui pequenos, somente no maior, em que há-de ir Fernão de Magalhães, estão quatro berços de ferro não bons, per toda a gente que levam em todos cinco são 230 homens, todolos mais têm já recebido o soldo, somente os portugueses, que não querem receber a mil reais, aguardam que venha o correio, porque lhes disse Magalhães que ele lhes faria acrescentar o soldo, etc.” (Sebastião Alvares in Garcia, 2007:161)

D. Manuel, o monarca português, após ter conhecimento da chegada de Magalhães à corte espanhola, enviara um dos seus serviçais para demover Fernão, assim como os restantes navegadores de nacionalidade portuguesa que se encontravam entre a tripulação, de realizarem este feito ao serviço da corte espanhola. Porém, o facto do navegador saber que D. Manuel não financiaria o seu projecto e nunca o trataria com o devido respeito, contribuiu para que esta tentativa não tivesse qualquer repercussão na vida destes navegadores.
No dia 20 de Setembro de 1519 esta tripulação iniciou a viagem rumo às Molucas. Este empreendimento, que aparentava ser tão ambicioso, fora comandado por Fernão de Magalhães, um português ao serviço da corte espanhola, o que não agradava nem à corte portuguesa nem aos argonautas espanhóis que o acompanharam na expedição.

“But he (Fernão de Magalhães) did not wholly declare the voyage which he wished to make, lest the people from astonishment and fear refuse to accompany him on so long a voyage as he had in mind to undertake, in view of the great and violent storms of the Ocean Sea whither he would go. And for another reason also. For the masters and captains of the other ships of his company loved him not. I do not know the reason, unless it be that he, the capitain-general, was portuguese-will and malevolence toward one another” (Pigafetta, s.d.38)

A instabilidade que se fizera sentir entre a tripulação e o próprio Fernão de Magalhães,bem como as tempestades marítimas, as doenças de que padeceram vários tripulantes, a falta de recursos, os confrontos com as etnias encontradas ao longo da navegação, entre outros factores, foram fulcrais para a eliminação de grande parte da tripulação.

Magalhães fora um navegador corajoso e extremamente persistente pois, procurou ultrapassar todos os entraves que o impediam de alcançar os seus objectivos e tal como não desistiu da ideia de comandar uma tripulação rumo às Molucas, também não aceitou a recusa, por parte do rei de Lapu-Lapu, em se converter à religião cristã. A sua persistência conduziu-o ao combate, crendo o navegador que seria a única forma de converter esse povo. No entanto, o resultado foi bem distinto, a tripulação de Magalhães era extremamente reduzida(quarenta e nove homens) comparativamente com os adversário (mil e quinhentos). Nesta guerra, morreram vários tripulantes, contabilizando-se entre eles, Fernão de Magalhães.

Com a sua morte, em 1521, iniciou-se a luta, por parte dos “familiares” de Magalhães, pelo legado deixado. Porém, como os seus verdadeiros herdeiros, referidos em testamento, tiveram o infortúnio de falecer muito cedo, as “chorudas compensações” que esta expedição prometia, acabaram por nunca se concretizar, uma vez que os sucessores do navegador e os seus herdeiros seguiram uma linhagem muito complexa (O independente, s.d. : 298).
Quando se analisa a ramificação genealógica de Fernão de Magalhães, como veremos mais à frente, entramos num sem limite de possibilidades pois, apenas se sabe que este argonauta pertenceu à estirpe dos Magalhães da Barca e confirma-se a existência de alguns irmãos e primos, que integram no seu nome apelidos como Sousa, Barreto, Mesquita e Magalhães. Manuel Villas Boas (1998:246) considera que a problemática da análise das ramificações do argonauta se deve a três motivos distintos; “primeiro, a obscuridade da sua origem e dos primeiros anos da sua vida, segundo pela aguda controvérsia que os seus feitos vieram a originar e, em terceiro lugar, pela miragem de fantásticos proveitos que a sua herança fez surgir aos olhos de alguns dos seus parentes.”

“O contrato que o levava a efectuar a expedição ao serviço dos reis de Espanha previa chorudas compensações que nunca se efectivaram, já que Fernão de Magalhães foi assassinado nas ilhas Molucas, não regressando por isso ao ponto de partida nem disfrutando a merecida glória. Vários parentes seus, vivendo em Portugal, tentaram, por mais de uma vez, habilitar-se em Espanha a essa herança”(O independente, s.d. : 298).

Em 1540, Jaime Barbosa, irmão de Beatriz Barbosa e, como tal, cunhado de Magalhães, surge com uma petição alegando que, após a morte de alguns dos seus familiares directos, declarados como herdeiros o argonauta, ele e os seus irmãos, passariam a ser seus herdeiros indirectos.

“Autos del fiscal de Su Majestad con Jaime de Barbosa y sus hermanos, como herederos de Diego Barbosa, comendador y alcaide que fue de los Reales Alcazares de Sevilla, y suegro de Fernando de Magallanes, sobre que se cumpliesen las mercedes, gracias y prerrogativas concertadas en las capitulaciones que se habían hecho a Magallanes cuando fue al descubrimiento del Maluco. Jaime Barbosa y sus hermanos fueron hijos de Diego Barbosa y de María Caldera, y hermanos de doña Beatriz de Barbosa, mujer legítima que fue de Fernando de Magallanes, que tuvieron un hijo llamado Rodrigo. Por muerte de los tres últimos quedó por heredero Diego de Barbosa, y tras la muerte de éste en 1525 sus hijos”. (Archivo de Indias (1540), “Autos de herederos de Diego Barbosa: cumplimiento mercedes”, PATRONATO,36,R.2)

Em 1567, aparece Lorenzo de Magallanes, caracterizando-se como “el pariente varon mas proximo de Hernando de Magallanes ya difunto, que fué el que descubrió el Estrecho de Magallanes, y como tal... su herdero ligitimo en todos sus bienes, derechos y aciones” (Lourenço in Veloso, 1938: 32). Para provar essa ligação, Lourenço realizou várias inquirições. Estas, para além de provarem que Lourenço era “filho dum primo germano de Fernão de Magalhães – a quem, se fosse vivo, trataria por tio”, provou também que o navegador “pertencia à estirpe dos Magalhães, senhores da Terra da Nóbrega, fidalgos de cota de armas e solar” (Veloso, 1938:33).
No decorrer das inquirições, os residentes de Ponte da Barca, quando interrogados, afirmaram conhecer Fernão de Magalhães e Rui de Magalhães, seu pai.
Este processo tem sido analisado por investigadores como Veloso (1938), Barros (2009), entre outros, visto que o aparecimento deste herdeiro e a descrição feita da sua arvore genealógica, na qual insere Fernão de Magalhães como seu segundo tio, dá-nos a conhecer alguns dos passos do nosso navegador, visto que se comprova que o mesmo, enquanto jovem, circulava por Ponte da Barca, podendo mesmo ser este processo fundamental para a análise do seu local de nascimento.
Porém, por muito plausível que nos pareça este processo, o seu desfecho ficou aquém das expectativas pois, apesar do Concelho considerar que as informações expostas, nesta acção, davam legitimidade a Lourenço para dar continuidade ao caso, este não dispunha de verbas para prosseguir.
O que dificultou a análise deste processo foi o facto dos Reis, que procederam a Carlos V, usarem a não concretização da divisão dos bens, pertencentes ao navegador, aquando a sua morte, para fugirem à promessa da monarquia de dar “(...) ciertas mercedes en remuneración de lo que en el dicho viaje nos habéis de servir, para vosotros (Fernão de Magalhães e Rui Falero) y para vuestros herederos é subcesores para siempre jamás...” (Medina, 1920:12).
Assim, esta sentença não teve o resultado desejado e tudo o que Lourenço conseguiu, segundo Veloso (1938:34) foi gastar o pouco dinheiro que possuia. Contudo, no parecer fiscal, não se exclui a ligação de Lourenço a Fernão de Magalhães, afirma-se simplesmente que este não conseguiu provar a ligação.

“Lourenço de Magalhães não provava ser parente próximo de Fernão de Magalhães; mas, ainda que o fosse, não tinha direito algum a pedir que com êle se cumprisse uma convenção de caracter absolutamente pessoal. Além disso, se Fernão de Magalhães voltasse a Espanha, teria de prestar contas do dinheiro que custavam os cinco navios da expedição, com a respectiva artilharia, munições, mantimentos e soldos; e com certeza seria obrigado a pagar uma elevada indemnização. Portanto, o que Magalhães não pôde satisfazer, por haver morrido durante a viagem, deverá exigir-se àquele ou àqueles, que forem reconhecidos como seus heredeiros, acrescido dos juros da mora.” (Veloso, 1938:34)

Em 1796, dá-se uma nova tentativa, por parte de António Luiz Alvarez Pereira Coelho da Silva Castelo Branco de Magalhães, de adquirir “todos os direitos e poderes” que lhe pertenciam, visto “ser” familiar do navegador.
Para se afirmar como seu parente, trouxe à ribalta dois testamentos. No primeiro, supostamente redigido por Magalhães, em 1504, o navegador alega “por meus unicos herdeiros a minha irmãa Dona Thereza de Magalhães e seu Marido João da Silva Teles, senhor da Caza da Pereira de Sabroza, e a seu filho e meu sobrinho Luiz Telles da Silva e seus sucessores e herdeiros (…) estabelecendo como estabeleço nos Varones primogenitos, ou femias à falta delles, descendentes da dita minha Irmãa Dona Thereza de Magalhaes e seu marido todos os anos, para que a Vinculo a minha Quinta de Souta, que está no mesmo termo de Saroza, e será perpetuamente padroado leigo” (Veloso, 1938:7). O segundo testamento, surge como forma de comprovar a ligação do requerente ao navegador, sendo este “redigido” por Francisco da Silva Telles.

“Nomeio por meus unicos e universais herdeiros meu Filho Antonio da Silva de Magalhaens de Faria e o meu Neto, filho do sobredito meu Filho, Gonçalo Alvares Moreira da Silva, para que nelles e em todos os seus descendentes se conserve a caza da Pereira de Sabroza, de que agora sou senhor, e a quinta de Souta...” (Veloso, 1938: 9)

Estes testamentos tiveram um contributo muito negativo para a questão da naturalidade do navegador, visto que muitos autores, após terem conhecimento da existência destes documentos, afirmaram que Sabrosa teria sido o berço de Magalhães. Essa “certeza” contribuiu para que a investigação sobre a sua naturalidade, ficasse presa a um documento maquinado, por alguém que, possuindo membros da família com o apelido Magalhães, aproveitou esse factor para tentar usurpar a corte, habilitando-se a uma herança que não lhe pertencia.

“As próprias cláusulas do testamento, elaborado ou mandado elaborar, com fins gananciosos, por quem se dizia descendente de Fernão de Magalhães, mostram que o interessado não só ignorava que o imortal navegador tinha irmãos, mas desconhecia também a existência dum testamento, por ele feito em Sevilha, a 24 de Agosto de 1519, quase um mês antes da partida da esquadra, fundeada em Sanlúcar de Barrameda” (Veloso, 1938:10)

1.2 – Teorias sobre a árvore genealógica dos Magalhães

Muitos são os investigadores que investigaram a origem dos Magalhães, contabilizando-se entre eles Manuell Villas Boas (1998), Manuel Abranches de Soveral (2007), Felgueira Gayo, para além de outros investigadores que, apesar de não possuírem edições sobre esta temática, dão o seu contributo em sites como o geneall, para uma melhor análise sobre esta questão.
Este tema é bastante trabalhoso dado que as primeiras gerações desta família foram bastante proliferas e, tal como refere António Taveira (in Geneall, 2009), os Magalhães, na segunda metade do séc. XV, já se encontravam espalhados por todo o país, o que dificulta a tarefa dos investigadores que se empenham em seguir o rasto dos descendentes dos Magalhães da Nóbrega.
As primeiras gerações da família Magalhães surgiram no Minho, mais concretamente na freguesia de Paço Vedro de Magalhães, anteriormente denominada por São Martinho de Paço Vedro, localizada no concelho de Ponte da Barca. Esta dinastia foi iniciada por Afonso Rodrigues de Magalhães, Senhor do Couto de Fontearcada (Póvoa de Lanhoso) e Senhor da Torre de Magalhães, ao qual sucedeu Rodrigo Afonso de Magalhães, nascido por volta de 1290. Do seu casamento com D. Inês Vasques de Sousa, nasceram três filhos, tendo sido Afonso Rodrigues de Magalhães, nascido cerca de 1330, a herdar a Torre de Magalhães e o Couto da Fonte Arcada. Foi nomeado alcaide-mor do velho castelo da Nóbrega, Senhor da Torre de Lindoso e Senhor de Larim e Vila Chã (concelhos extintos em 1855 e integrados no de Vila Verde)2. Afonso casou-se com D. Teresa Freire de Andrade, filha do mestre da ordem de Cristo, de quem teve quatro filhos. Gil Afonso de Magalhães, o primogénito, nascera por volta de 1370, tendo herdado os títulos de seu pai. Os restantes filhos espalharam-se por várias áreas do país, constituindo matrimónios que os interligavam a famílias poderosas. Assim, Pedro Afonso de Magalhães, segundo filho, fora viver para Torres Novas e Ourém, D. Joana Leonor de Magalhães, casara-se com Vasco Machado, Senhor da Casa de Castro, em Carrazeda, D. Maria de Sousa Magalhães, contrairá matrimónio com Luís Machado, fidalgo da casa de D. Afonso V, D. Inês casara-se com o seu parente Luís Gonçalves de Sousa e a D. Froile com o seu vizinho Gonçalo Rodrigues de Araújo, senhor dos castelos do Lindoso e de Castro Laboreiro3.
Gil Afonso de Magalhães recebera, no decorrer da sua vida, quer por transmissão hereditária quer por mérito próprio, duas lanças4 e os títulos de alcaide-mor do Castelo da Nóbrega, Senhor da Torre de Magalhães e Senhor de Vila Chã e Larim.
Este Senhor casou-se duas vezes, sendo sua primeira esposa Inês Vaz, aia da rainha D. Filipa. Este casamento, e os acontecimentos que o antecederam5, contribuiu para que ocorresse uma maior aproximação entre Gil e a corte portuguesa, sendo exemplo dessa proximidade o facto do Rei D. João I ter aceite ser padrinho do seu primeiro neto. Gil Afonso e Inês Vaz tiveram vários descendentes, sendo Afonso de Magalhães, o primogénito. Como o sucessor de Gil Afonso de Magalhães não teve descendentes, passou o legado para o seu irmão João de Magalhães, passando este a ser o sucessor do Souto de Rebordões, da Torre de Magalhães, do Couto de Fontearcada, do Castelo da Nóbrega, das Vilas de Larim e de Vila Chã.
João de Magalhães contraiu matrimónio com D. Isabel de Sousa, neta do próprio mestre de Cristo, unindo-se assim as famílias Sousa e Magalhães. Esta união pode ser crucial para a desmistificação das armas do brasão de Fernão de Magalhães, o argonauta responsável pela concretização da primeira circum-navegação pois, como o próprio refere no seu testamento, usava as armas dos Magalhães e Sousas.
O orgulho sentido pelas suas armas e pelas dinastias que elas representam pode não estar directamente ligado aos seus progenitores mas sim aos antepassados a quem foram atribuídos estas armas.
Muitos foram os ramos familiares unidos através do matrimónio, dando assim origem à associação de vários apelidos aos Magalhães pois, tal como nos informa Villas-Boas (1988:66-67) “Um aspecto importante destes casamentos foi a associação dos nomes de Sousa e Meneses a vários ramos dos Magalhães que deles descenderam. A subsequente multiplicação dos Sousa Magalhães e dos Magalhães e Meneses justifica a inclusão aqui de uma pequena descrição das origens e desenvolvimento destas duas famosas linhagens medievais, que tão intimamente se relacionaram com os Magalhães”.
Para além de João de Magalhães, que ao lado da sua esposa, D. Isabel de Sousa, daria seguimento à estirpe dos Magalhães e iniciaria a dinastia dos Senhores da Barca, Gil Afonso tivera mais filhos, sendo eles, Gil Afonso de Magalhães, Gil de Magalhães (1405?-1470?), Diogo Annes de Magalhães (1407?-1473?), Martim Gil de Magalhães (1408?-1475?), Maria, Francisco, Isabel e Fernão de Magalhães (1421?-1499?), sendo este último, filho do segundo matrimónio. Muitos deles viriam a casar com elementos ligados à corte estabelecendo, desta forma, uma relação firme com os elementos da casa real. Esta ligação com a corte portuguesa é visivel ao longo das várias gerações, o que pode justificar o facto de Fernão de Magalhães ter conseguido prestar serviços à corte, com apenas 12 anos.

“Com DOZE ANOS – abaixo desta idade, sobretudo depois das Côrtes da Guarda em 1465, não entravam, geralmente, os moços-fidalgos nos Paços Reais – veio Fernão de Magalhães para Lisboa, onde ficou ao serviço da raínha D. Leonor, como págem.”

João de Magalhães (1400?-1464?) preservara essa relação com a corte pois, dos nove filhos que tivera, sendo o primogénito apelidado de Gil, afilhado do Rei D. João I, todos eles “casaram dentro da maior aristocracia das cortes de D. João I e de D. Afonso V ou ocuparam postos religiosos de relevo, nomeadamente nas sés de Coimbra e de Lamego” (Villas-Boas, 1998:123).
Gil, nascido por volta de 1430, veio a ser o segundo senhor da Barca, tendo casado duas vezes. O primeiro matrimónio foi com D. Maria de Meneses, filha do alcaide-mor de Campo Maior, de quem teve seis filhos, João de Magalhães, nascido por volta de 1477, Rui Gonçalves Sousa de Magalhães e quatro filhas, que se viriam a dedicar à vida consagrada. Do segundo casamento, com D. Isabel de Meneses, filha de Gonçalo Nunes Barreto, alcaide-mor de Faro e senhor da Vila da Quarteira, localizada no algarve, contabilizaram-se mais onze filhos, entre os quais se encontra Pero Barreto de Magalhães, António de Magalhães, Diogo de Magalhães, Jorge Barreto, Simão Barreto e Gil Barreto de Magalhães que se aventuraram nas descobertas maritimas rumo às Indias. Franscisco de Magalhães, outro filho de Gil de Magalhães optou por seguir uma vida mais relaxada, casando com D. Leonor Pereira, filha do senhor de Bretiandos, pertencente a uma importante linhagem de Ponte de Lima. Dos restantes filhos não há informações.
A referência a estes elementos torna-se crucial para compreender a conexão de Fernão de Magalhães à estirpe dos Senhores da Barca pois, segundo consta na Carta redigida por Carlos I, endereçada ao Rei de Portugal, onde apela pela defesa de Simão Barreto de Magalhães e Francisco de Magalhães, acusados de ter morto o Juiz de Ponte da Barca, estes Barretos são familiares de criados e servidores seus.

“...Simón Barreto de Magallanes y Francisco de Magallanes, su hermano, vinieron a mi y me hicieron relación que por cierta muerte de un juez de Ponte da Barca en que fueron culpantes, diz que vos los mandastes condenar a pena de muerte y perdimiento de sus bienes, y porque diz que ellos son de corona y se quieren presentar en la cárcel eclesiástica y mostrar cómo son sin culpa de la dicha muerte, me suplicaron vos escribiese sobrello; y porque los dichos Simón Barreto y Francisco de Magallanes son debdos de criados y servidores nuestros, por cuyo respeto tenemos voluntad que sean favorescidos, afetuosamente vos ruego hayáis por bien que, si ellos son de corona, se libren por ella, y no consintais que se les haga agravio, antes mandéis que com justicia sean favorecidos...” (Medina, 1920:243)

Face a esta carta, e ao facto de em 1518, data em que foi redigido o dito documento, Fernão de Magalhães já se encontrar ao serviço do Rei de Espanha, acredita-se que o navegador, que se apelida de Magalhães, era familiar dos Barreto de Magalhães. Villas Boas (1998:192) descreve Fernão de Magalhães como primo de Diogo, Jorge, Gil Barreto de Magalhães e dos restantes irmãos.

“Estes cinco Magalhães não partiram todos ao mesmo tempo, pois Pero Barreto de Magalhães e seu irmão António, que eram provavelmente os mais velhos, saíram com a frota de Pedro de Anaia, em 1505, onde se integrava também o seu primo Paio de Sousa; os restantes, Diogo, Jorge e Gil Barreto de Magalhães, partiram no ano seguinte na frota de Tristão da Cunha e Afonso de Albuquerque. Curiosamente, os dois primeiros estavam inicialmente destinados a embarcar na frota de D. Francisco de Almeida, em que tinha também embarcado o seu primo Fernão de Magalhães”

Assim sendo, Fernão de Magalhães era familiar de João de Magalhães, nascido por volta de 1477, que viria a ocupar o lugar de terceiro senhor da Barca. Este senhor seria pouco mais velho do que Fernão, por conseguinte a continuidade da análise da descendência dos Senhores da Barca, para justificar a pertença de Fernão de Magalhães aos Magalhães da Nóbrega, deixa de fazer sentido porque ainda que estes lhe pertençam são seus ascendentes .
Apesar de estar provado que o navegador está ligado ao Magalhães da Nóbrega, o seu nome não consta nos nobiliários pois, como refere Manuel Villas-Boas (1998:16), “o número crescente de ramos familiares cedo exigiu uma sistematização da multidão de personagens que se apresentava com o passar das gerações”. Assim sendo, crê-se que Fernão não descendia dos grandes senhores da Barca mas sim, de um dos seus parentes.
Como se pode verificar, a herança dos grandes senhores era passada, de geração em geração, para os filhos primogénitos, ficando os restantes herdeiros desprovidos da fortuna dos seus pais. Por conseguinte, estes últimos eram obrigados a procurar louvores e riquezas fora do seu local de origem, tendo, muitos deles, se aventurado nas viagens marítimas.

“Os fumos da Índia subiram sem dúvida o vale do Lima e espalharam-se pelas frias câmaras da Torre de Magalhães, mas, dos cinco filhos de Gil de Magalhães que se deixaram arrastar pelos ecos da Índia, poucos voltarão.” (Villas-Boas, 1998:125)

Tal como acontece na análise genealógica das outras estirpes, a descendência dos Magalhães sempre fora analisada em consonância com os herdeiros dos títulos, não havendo, por conseguinte, muitos dados sobre os restantes elementos da família apelidados de Magalhães pois, como refere O Independente (s.d., 298) “...as primeiras gerações desta família foram especialmente proliferas, espalhando rapidamente o sangue dos Magalhães por numerosíssimas famílias portuguesas, com particular incidência no norte do país. É impossível seguir o rasto de todas elas”.
Não é por acaso que, tal como comprovam as Inquirições realizadas por Lourenzo de Magalhães, alguns residentes de Ponte da Barca conheciam Fernão de Magalhães e seu pai Rui de Magalhães.
Manuel Villas Boas, na sua obra “Os Magalhães”, procura analisar, de forma bastante extensa, a origem e descendência desta estirpe, defendendo que Fernão de Magalhães, o navegador, era neto de Fernão de Magalhães (o velho) e de D. Brites de Mesquita e que, poderia ser filho de Lopo de Magalhães ou de Pedro de Magalhães, visto que ambos tiveram um filho, nascido por volta de 1480, a quem chamaram Fernão de Magalhães. Defendendo esta teoria, Villas Boas prova que, não deu a devida importância às inquirições de Lourenço de Magalhães onde prova que “o pai e o avô de Fernão de Magalhães, como insofismavelmente mostram os documentos arquivados em Sevilha, chamavam-se Rui de Magalhães e Pedro Afonso de Magalhães...” (Veloso, 1938:19) e aos dados referidos na obra “Archivo Historico Portuguez”, onde António Baião prova que o Fernão de Magalhães, filho de Pedro Magalhães não era o navegador pois, dois anos após a sua morte, o filho do dito Pedro, recebeu de moradia da Casa Real, 5066 reais.

No decorrer de uma pesquisa, verificamos que vários são os familiares que surgem associados a Magalhães, uns baseados em fontes fidedignas e outros em fontes duvidosas. No entanto, cabe-nos a nós diferenciar quais os familiares que dispõe, ou não, de uma fonte documental que sustente a sua ligação com o navegador.
Fidedignamente, podemos afirmar que Magalhães tinha pelo menos três irmãos, Duarte de Sousa, Diogo de Sousa e Isabel Magalhães, e que fora casado com Beatriz de Barbosa, de quem teve dois filhos, Rodrigo de Magalhães e um outro que se encontrava no seu ventre aquando a partida. Tinha pelo menos dois sobrinhos, um chamado Martin de Magalhães (filho de António Martinez e Ana de Oquintal) e outro apelidado de Álvaro de Mesquita, um dos tripulantes que acompanhou Magalhães.
Duarte, irmão de Magalhães, aparece referenciado numa procuração passada pelo navegador, a 4 de Julho de 1515, na qual o navegador encarrega Duarte de receber de Lopo Pedreira, almoxarife de Ponte de Lima, duzentos ducados, que se encontravam em seu poder.

“... a 4 de Julho de 1515, Fernão de Magalhães passou uma procuração a seu irmão, Duarte de Sousa, para que fosse receber a referida quantia de Lopo Pereira, almoxarife de Ponte de Lima, e em 5 de Junho de 1516 foi passada a sentença do processo pelo famoso bacharel João Cotrim, corregedor dos Feitos Cíveis da Corte, a qual ia no sentido de que Fernão de Magalhães recebesse o montante da dívida em causa. Duarte de Sousa foi a Ponte de Lima em 24 de Novembro de 1516 e aí recolheu 80 751 réis.” (Garcia, 2007:30)

Os nomes Diogo de Sousa e Isabel de Magalhães, irmãos de Fernão de Magalhães, aparecem mencionados no testamento do navegador.

“O govêrno das terras e ilhas descobertas, com o título de Adelantado, assim como a veyntena de todos os rendimentos e outras mercês contidas na capitulação ajustada com sus altezas (...) deixa-os o célebre navegador, constituidos em morgado (mayoradgo), a seu filho Rodrigo de Magalhães; e na falta deste, ao filho e filha, que nascesse de sua mulher. Se falecessem sem descendência, passaria o morgado para seu irmão Diogo de Sousa, q agora byve com el sereysymo señor Rey de portugal; e no caso de também não ter filhos, herdá-lo-ia então sua irmã Isabel de Magalhães.” (Veloso, 1938:13-14).

Num documento, existente no arquivo geral das Indias, intitulado “Autos de herderos de Martín de Magallanes: abonos sueldos”, este indivíduo, que se encontrava entre a tripulação de Magalhães, é definido como sobrinho de Fernão de Magalhães.
No mesmo arquivo encontra-se uma “Carta de oficiales Casa Contratación de Sevilla al Rey”, onde descreve Álvaro de Mesquita como primo carnal de Fernão de Magalhães.
Relativamente aos restantes familiares, que nos poderiam aproximar das suas origens, apenas existem suposições, construídas consoante as direcções das investigações dos pesquisadores. Uma das teorias que ainda tem uma fonte documental que a alimente é a de que Rui de Magalhães era pai do argonauta. É referido, nas inquirições judiciais realizadas para descobrir se Lourenço de Magalhães se deveria habilitar, ou não, à herança do navegador, que o avô de Magalhães teria tido pelo menos dois filhos, Rui Pais de Magalhães e Rui de Magalhães. O primeiro, era pai de Paio Rodrigues de Magalhães e avô de Lourenço de Magalhães, o segundo era pai de Fernão de Magalhães e dos restantes irmãos. Assim, segundo esta ordem de ideias, o navegador era segundo primo de Lourenço de Magalhães, daí a este se denominar de seu herdeiro.
No verdadeiro testamento de Fernão de Magalhães, o navegador refere que as suas armas pertenciam aos Magalhães e aos Sousas. Esta informação é interpretada por vários investigadores, nomeadamente Barros (2009), como sendo os apelidos dos seus progenitores. Porém, os apelidos referenciados nas suas armas poderão caracterizar os primórdios de Magalhães. Passo a explicar. A atribuição de um brasão decorre aquando o reconhecimento de um acto heroico, por parte de um membro da nobreza. Com a chegada das novas gerações, o brasão é-lhes atribuído hereditariamente, como símbolo do seu estatuto social. Assim, não quer dizer que as armas dos Magalhães e Sousas, representassem os apelidos dos familiares directos do Fernão de Magalhães, há essa possibilidade mas não é, de todo, segura.
Se analisarmos a origem das primeiras gerações dos Magalhães, verificamos que este ramo se iniciou com Afonso Rodrigues de Magalhães, Senhor da torre de Magalhães localizada na freguesia de Magalhães, concelho de Ponte da Barca. Várias foram as gerações que lhe sucederam, Gil Afonso de Magalhães foi o seu sucessor e a este último sucedeu-lhe João de Magalhães. Este constituiu matrimónio com D. Isabel de Sousa, tendo o casal residido na terra da Nóbrega – Ponte da Barca.
Visto que Fernão de Magalhães descende da famílias dos Magalhães, donatários da Nóbrega, as suas armas deverão corresponder aos seus antepassados. Por conseguinte, não creio que a justificação de Barros (2009), quando refere que a mãe do navegador deverá se apelidar de Sousa, devido à referência deste apelido no seu testamento, merecerá credibilidade pois, são diversos os motivos que poderão contribuir para que o argonauta use as armas dos Magalhães e dos Sousa.

2. Fernão de Magalhães – Ao serviço da corte Portuguesa

Fernão de Magalhães nasceu no séc. XV, numa época em que os homens valentes e curiosos se lançavam no mar, guiados pelos seus comandantes, em busca de iguarias e de novas terras, com o pretexto de converter os povos à religião Cristã. Magalhães nascera com um espírito extremamente aventureiro e, como tal, a calma do Norte não lhe permitia alcançar os louvores que tanto ansiava. Assim, completados os 12 anos, Fernão, juntamente com o seu irmão Diogo, abandonaram a sua terra natal para prestar serviços na corte, como pajem da rainha D. Leonor, trabalho conseguido através de seu pai.
Esta mudança contribuiu para que Magalhães recebesse uma educação digna de um fidalgo e tivesse conhecimento dos grandes feitos marítimos, despertando assim a sua sede de conquista.
Em 1505, tendo Fernão de Magalhães e Diogo de Sousa, seu irmão, a idade de escudeiros, embarcou pela primeira vez, na maior armada de Guerra existente até aquela altura, sob o comando de D. Francisco de Almeida, que pretendia conquistar o Oceano Pacifico, já conhecido pelos portugueses. Magalhães destacava-se entre os outros pela sua coragem e valentia, colaborando na conquista de Quíloa, na expurgação e incêndio de Mombaça e na fundação da armada da ilha de Angediva.1 Assim, em 1510, já ocupava o cargo de capitão do recente governador da Índia, Afonso de Albuquerque.
Em 1511, o grupo de navegadores portugueses, entre os quais se encontrava Magalhães, decide atacar Malaca, visto que nesse território abundavam as riquezas. Cheio de valentia, Magalhães contribui de forma muito positiva para a conquista dessa cidade.
De regresso a Portugal, Magalhães procurou o rei D. Manuel aspirando o devido reconhecimento pelos seus feitos. Pediu ao dito rei um aumento da soldada pelos inúmeros serviços prestados à coroa, sendo o seu pedido ignorado. Desapontado com o monarca, decide alistar-se numa nova embarcação que pretendia reconquistar e punir a cidade marroquina de Azanor. Apesar da fácil conquista, Magalhães, saiu lesado, visto que o seu cavalo morrera em combate e que ele próprio havia sido ferido no joelho, lesão essa que lhe deixou marcas na forma de caminhar.
Magalhães não recebeu qualquer aumento da moradia, como era de seu direito e os seus feitos, ao serviço da corte, não foram devidamente reconhecidos. O nosso argonauta sabia que não caia nas graças do Rei D. Manuel I mas, ainda assim, solicitou-lhe uma audiência para requerer a el-Rei o comando de um navio. A resposta dada pelo monarca foi negativa fazendo com que o argonauta formulasse um outro pedido:

“(...)licença para hir viver com quem lhe fizesse mercê, em que alcançasse mais dita que com êlle. ElRey lhe disse que fizesse o que quisesse; polo que lhe quis beijar a mão, que ElRey nam quis dar” (Correia in Veloso, 1441:28)

Depois desta troca de palavras, Magalhães refugiou-se no Porto, local onde permaneceu até ter um plano estratégico que viria a obter a aprovação do monarca do país vizinho...

3 – Vida de Fernão de Magalhães – Glória ou Desalento?

“Não há vida mais terrível que a de Magalhães (…) Tudo é combate, navegações longinquas, fugas e processos, naufragios e assassinio frustrado, enfim a morte entre os barbaros” (Villas-Boas in Arana, 1881:6)

Longo foi o percurso traçado por Magalhães para que o seu nome fosse hoje reflexo das suas conquistas e descobertas marítimas, e reconhecido como o homem que descobriu o Oceano pacifico, o estreito de Magalhães e realizasse a primeira circum-navegação em torno do globo.
Todos nós, de certa forma, quando pensamos no feito de Magalhães, temos tendência a enaltecê-lo, não pelos acontecimentos da sua vida mas sim pelo facto do navegador ter conseguido imortalizar o seu nome. Ainda hoje, quase 500 anos após a sua morte, os cientistas continuam interessados em desvendar alguns dados da sua vida.
Se analisarmos aprofundadamente a história e biografia do navegador, verificamos que, apesar desta personagem ter vivido em busca da glória, só a conseguiu alcançar após a sua morte.
O nome Magalhães ficará eternamente ligado à realização da primeira circum-navegação em torno do globo. Porém, este feito não teria sido concretizado sem o contributo de Sebastião Elcano que, após a morte do navegador, cooperou para que a viagem fosse finalizada. António Pigafetta, que se encontrava entre a tripulação, também teve um papel fulcral na imortalização do nome “Fernão de Magalhães”, uma vez que graças ao seu diário de bordo, temos hoje ao nosso alcance uma descrição pormenorizada desta “aventura”.

Como é que nós poderemos descrever a vida de Magalhães como uma vida de glória se o nosso navegador fez parte de várias tripulações, a mando do Rei de Portugal, e nunca conseguir ser devidamente respeitado e valorizado no seu país, sendo obrigado a emigrar para conseguir realizar o seu sonho – comandar uma tripulação e levá-la às Molucas, onde obteria inúmeras riquezas.
No entanto, se analisarmos a vida do nosso navegador vemos que, quando este entrou numa das naus, que contribuiriam para o grande feito, teve de deixar muitas coisas em terra. Deixou a esposa gravida, com a qual tinha contraído casamento recentemente, e um filho de seis meses, consciente de que corria o risco de não assistir ao nascimento e crescimento dos seus filhos. Lançou-se nos sete mares, com a frieza dum lobo dos mares, procurando tornar o seu nome eterno.
No entanto, até que ponto é que Magalhães se sentiu realizado durante o percurso da sua vida, visto que só conseguir o verdadeiro reconhecimento após a sua morte?
Magalhães sempre tivera de lutar para merecer credibilidade, quer seja ao serviço da corte portuguesa, como ao serviço da corte espanhola. Mesmo depois de conseguir uma frota que viria a permitir ao navegador a realização de um sonho antigo, o navegador não conseguiu o devido respeito por parte dos restantes tripulantes, sofrendo represálias e traições.
Também não fora uma viagem fácil pois, visto que grande parte do mundo estava por descobrir, Magalhães não conseguiu zelar pela sobrevivência e bem estar da sua tripulação. Apesar da sua coragem inabalável, no decorrer da passagem pelo Oceano Pacifico, o navegador teve de assistir à morte de grande parte da tripulação, vitimas de escorboto, e incapaz de os salvar, Magalhães começou a entrar em desespero:

«Durante esses três meses e vinte dias, escreve Pigafetta, “fizemos umas boas quatro mil léguas pelo Mar Pacífico, que era assim chamado muito correctamente. Pois durante esse tempo não tivemos nenhuma tempestade e não vimos terra nenhuma, excepto duas pequenas ilhas desabitadas, onde só encontramos passaros e árvores». Até Fernão de Magalhães, normalmente insensível às provações, fica com um temperamento instável devido a tantos dias sem verem terra. Um dia, numa fúria, atira os mapas pela borda fora, gritando: “Os cartógrafos enganaram-nos, as Molucas não se encontram em parte nenhuma”» (Saavedra, s.d.:35)

4 – A primeira viagem à volta do mundo do ponto de vista antropológico


“A geografia rompeu os laços que a traziam ligada às preocupações do vulgo, e pôde desenvolver-se livremente para chegar ao estado em que hoje a vemos.” (Villas-Boas in Arana, 1881: 5)

Antes da realização da primeira circum-navegação em torno do globo, protagonizada por Fernão de Magalhães e pela sua tripulação, grande parte do mundo estava por conhecer e, como tal, o navegador lançou-se no mar sem estar preparado para a imensidão do Oceano Pacifico, que contribuiu para a morte de inúmeros argonautas, vitimas de escorboto, e para a existência de uma grande diversidade cultural, constando os residentes, a tribo índia Tehuelche, denomindados pela tripulação de Magalhães por “gigantes” ou “Patagónios”

“As in most sciences, so in geography, a great discovery is rarely sudden” (Guillemard, 1890:1)
Desde sempre o mar fascinou o ser humano, pela sua imensidão, pela sua força, pelo mistério envolvente e pela vontade inabalável, por parte do Homem, de se tornar um “lobo do mar”. Este interesse surgiu da curiosidade inicial, do homem primitivo, pela imensidão do mar e pelos seres que nele habitam. Com o passar dos séculos, o Homem construiu formas de deslizar sobre a água, não somente para descobrir o que existia para além da imensidão do mar mas também para adquirir os bens necessários para a sua própria sobrevivência.
O mar tem sido um local de permanecia de inúmeros seres vivos pois, para além dos seres que residem a tempo inteiro no mar, como é o caso dos peixes e das plantas marítimas, este local surge também como um local de acolhimento de vários grupos identitários que, ao longo dos vários períodos históricos têm dominado as águas em busca de interesses sociais e económicos1.
A extensão do oceano tem sido palco das aventuras, conquistas e lutas dos grupos que dominaram parte da história dos mares - Piratas, conquistadores, pescadores, excursionistas, aventureiros, entre outros - que, regidos pelos conhecimentos adquiridos, pelos seus antepassados ou pelas experiências pessoais, procuravam dominar ás áreas percorridas...
Actualmente, já conhecemos geograficamente o nosso planeta e, embora nem todos tenhamos oportunidade de navegar na imensidão do oceano, sabemos exactamente onde nos levam as suas águas. No entanto, no séc. XV, grande parte do planeta estava por descobrir e por conquistar e, aqueles que se aventurassem no mar, rumo às especiarias e à conquista de novas terras, poderiam alcançar inúmeras riquezas e prestigio social.
As recompensas da monarquia, aquando a conquista de novas terras2 e as trocas comerciais ocorridas nas terras visitadas, permitiam aos navegadores adquirir riquezas que os governariam ao longo de toda a vida ou que sustentaria os seus, após a sua morte, como demonstra a seguinte passagem do testamento de Magalhães;

“A décima parte dos lucros da expedição devia repartir-se por quatro mosteiros (...) O govêrno das terras e ilhas descobertas, com o título de Adelantado, assim como a veyntena de todos os seus rendimentos e outras mercês contidas na capitulação ajustada com sus altezas(...) deixara-os o célebre navegador, constituídos em morgado (mayoradgo), a seu filho Rodrigo de Magalhães; e, na falta dêste, ao filho ou filha, que nascesse de sua mulher. Se falecessem sem descendência, passaria o morgado para seu irmão Diogo de Sousa, q agora byve com el serenysymo señor Rey de portugal; e no caso de também não ter filhos, herdá-lo-ia então sua irmã Isabel de Magalhães.” (Veloso, 1938: 14)

Tanto no séc. XVI como na actualidade, o mar é visto como uma fonte de riqueza, quer seja pelos produtos existentes, no passado, nas terras conquistadas, quer seja, actualmente, através da actividade piscatória e da exploração turística interligada ao mar (navegação de recreio; cruzeiros e actividades complementares; e os eventos ligados ao mar e à náutica).
No decorrer das actividades náuticas, tanto os conquistadores como os pescadores, abandonam as suas famílias em terra, conscientes da insegurança das tempestades marítimas e do risco de um não regresso, em busca de uma situação económica mais favorável. Assim o fez Fernão de Magalhães.
O navegador deixara dois filhos, um com 6 meses, Rodrigo de Magalhães, e outro ainda no ventre de sua esposa, Beatriz Barbosa, na esperança de conquistar Moluca, de saciar a sua sede de aventura e de adquirir o digno respeito da corte espanhola, já que não conseguira o mesmo na corte portuguesa.
Magalhães estava ciente dos perigos do mar e, como tal, fizera um testamento a 24 de Agosto de 1519, antes da sua partida, onde mencionara alguns familiares que deixava em terra, entre eles o seu filho, a sua esposa, o seu irmão Diogo de Sousa e sua irmã Isabel de Magalhães.
Iniciada a viagem, a vida pessoal dos navegantes era deixada em terra firme e, qualquer tristeza ou medo inicialmente sentido, depressa desvanecia e dava origem à rudeza digna de um verdadeiro navegante, que viria a lutar contra os povos que resistissem às suas ideologias religiosas.
Magalhães iniciara viagem, juntamente com a sua tripulação, com inúmeros objectivos, entre eles participar numa grande aventura, vir a ser aplaudido como herói, conquistar as ilhas Molucas, obter grandes riquezas, divulgar a religião cristã aos povos conquistados e aprender algo mais sobre o nosso planeta. Porém, a viagem tornou-se mais longa, produtiva e mais trágica do que o inicialmente previsto.
Através desta viagem, Magalhães, juntamente com os seus tripulantes, não só realizaram a primeira circum-navegação à volta do planeta, como contribuíram para a descrição etnográfica dos povos existentes nos diversos pontos de paragem. Exemplo disso é o diário de António Pigafetta, um dos tripulantes que acompanhou Fernão nesta viagem que, espantado com a diversidade cultural existente em torno do mundo, procurou descrever os povos com quem iam tendo contacto.
Na sua primeira paragem, em Verzin, tiveram a sua primeira experiência antropológica, observando, convivendo e descrevendo os hábitos culturais do povo nativo. Pigafetta (s. d.), descreve-os como um povo naturalista, que vivia em conformidade com os costumes da natureza, com uma esperança média de vida superior a cem anos. Fisicamente eram pretos, tinham três furos no lábio inferior, possuíam corpos extremamente atléticos, não usavam barba e, como vestimenta, usavam somente um arco coberto com longas penas de papagaio com as quais tapavam somente a parte de trás do corpo. Pigafetta (s. d.: 43) não os considerava esbeltos pois, como o próprio afirmou “they look like enemies from hell”. Viviam em casas relativamente grandes, onde era acolhida toda a família, cerca de cem pessoas por habitação, e dormiam em redes de algodão. Esta comunidade possuía canoas de madeira feitas com ferramentas em pedra e tinham uma forma peculiar de se vingarem dos seus inimigos, alimentando-se da sua própria carne.
Este povo era extremamente curioso e, como tal, no decorrer das trocas comerciais, ofereciam bons pagamentos pelos produtos.

“The people of this place gave for a knife or a fishhook five our six fowls and for a comb a brace of geese. For a small mirror or a pair of scissors, they gave as many fish as ten men could have eaten. For a bell or a leather lace, they gave a basketful of the said fruit called Battate…3 (Pigafetta, s. d. :42)

Estas trocas não eram importantes somente pelo seu carácter económico mas também pela sua componente social e cultural, visto que no decorrer destes intercâmbios, era estabelecida uma guerra pacifica entre os intervenientes, em que a obrigatoriedade da retribuição simbolizava a superioridade da comunidade que dispunha de um maior número de bens.

Estas trocas surgem do “entrelaçamento entre fenómenos económicos, morais, estéticos, religiosos e jurídicos nos seio de prestações e contraprestações que se apresentam preferencialmente como atos voluntários, mas nos quais se entrevê a força obrigatória do dever, “sob pena de guerra privada ou pública”. (Maus in Bevilaqua, s. d.)

Para Magalhães as oferendas eram uma forma de socialização entre os povos, uma forma pacifica de criar relações com a comunidade nativa e de obter produtos necessários para a subsistência dos próprios argonautas. Assim, quando encontrou um gigante4, pertencente aos Tehuelches do Polo Ártico, procurou arranjar uma forma de estabelecer amizade com os elementos da tribo, imitando inicialmente os seus comportamentos e procurando tranquilizá-los.
Estes nativos residiam na Patagónia e, apesar desta comunidade ser apelidada pelos navegadores de gigantes não medem mais de 1,80m, o que só prova que os tripulantes desta expedição tinham uma estrutura média baixa. Esta comunidade não residia em casas e alimentava-se de uma raiz doce (Capae) e de carne crua.
Os ditos “gigantes” andavam com a cara pintada de vermelho, o contorno dos olhos pintado de amarelo e dois corações desenhados e pintados de branco no centro das bochechas. Vestiam-se com peles de animais e tinham uma força que lhes permitia derrubar quatro dos homens de Magalhães em simultâneo. Eram velozes, defendiam-se e caçavam através do uso do arco e flecha e eram extremamente ciumentos com as suas mulheres. Estas, mais pequenas e mais gordas, usavam somente peles de animais para tapar as partes intimas e não vestiam nada na parte de cima, deixando sobressair os seus seios descaídos e os seus grandes bicos. Usavam também a cara pintada, tal como os homens.
Esta comunidade tinha uma forma muito tradicional de tratar as enfermidades. Quando tinham dores de estômago, eles colocavam uma seta com “dois pés de cumprimento” pela garganta abaixo, provocando assim o vómito, extraindo do seu estômago um creme verde, devido à ingestão de determinadas ervas, misturado com sangue. Para curar dores de cabeça, ou de outra parte do corpo, os Tehuelches fazem um corte na parte dorida para que seja extraído sangue do seu corpo.
Relativamente aos seus rituais fúnebres, quando falecia alguém na sua tribo, o defunto era visitado por dez ou dose diabos todos eles pintados, que dançavam em volta do seu corpo. Um dos diabos era mais alto (Setebos) e destacava-se entre os outros, não só pela altura mas também por fazer mais barulho e alegrar mais que os restantes (Cheleule). Um dos gigantes afirmou ter visto diabos cuspidores de fogo com dois cornos na testa e o cabelo cumprido até aos pés.
Quando Magalhães se apercebeu da presença de um Tehuelche, que se encontrava completamente nu, a dançar, pular e cantar, mandou um dos seus homens para junto dele, para que o mesmo o imitasse de forma a conseguir que o gigante se acalma-se.
Magalhães conseguiu atrai-lo para o barco onde, como manda a cortesia, lhe ofereceu comida, bebida e, seguidamente lhe ofertou um espelho, para que o mesmo pudesse ter uma percepção da sua imagem. Esta oferenda teve um efeito negativo pois, o nativo assustou-se ao ver o seu reflexo e deu um salto para trás, deitando quatro dos seus homens ao chão. Para que a ira do gigante não fosse despertada, Magalhães deu-lhe dois cintos, um espelho, um pente e um terço.
Como retribuição, o gigante levou os argonautas para junto dos restantes elementos da comunidade ofertando-lhes um pó branco feito de ervas e raízes, tentando explicar ser a única coisa que eles possuíam. Os navegadores, solidários levaram os gigantes para os seus barcos, alimentando-os e trocando conhecimentos com os próprios nativos. Este era um povo de caçadores e colectores e, como tal, ensinaram os argonautas a caçar guanacos (Lamas). Estes animais tinham uma carne bastante nutritiva e as suas peles eram o agasalho perfeito para sobreviver às temperaturas gélidas que se faziam sentir no Ártico.
Magalhães sentia uma certa curiosidade relativamente a esta comunidade pois, os nativos eram a prova viva da existência de uma cultura tão distinta da sua. E como conseguiriam provar a El-Rei Carlos I a existência destes seres ou a sua presença naquela ilha, o navegador decidiu então levar quatro gigantes para Espanha, metendo-os à força no navio. Dois deles, revoltados com o afronto, gritaram tanto que depressa foram libertados. O alarido atraiu a atenção dos nativos que, com o arco e flecha em punho decidiram iniciar o confronto, atingindo mortalmente um dos tripulantes com uma flecha envenenada. Após este infortúnio os nativos desapareceram de imediato e os navegadores, após enterrarem o corpo defunto, levantaram âncora.
Reiniciada a viagem, Magalhães continuou ao comando da operação, usufruindo do poder que lhe havia sido delegado por D. Carlos. Revoltados com algumas das atitudes de Magalhães ou ansiosos por terem o controlo sobre a frota e, por conseguinte, sobre as riquezas conseguidas com a expedição, Juan de Cartagena, António de Coca, Luis de Mendonza e Gaspar Quesada, começaram a conspirar contra Magalhães.
Uma traição sempre fora vista como uma enorme deslealdade sendo um crime social e cultural imperdoável. Assim, quando Magalhães descobriu esta infidelidade, esquartejou diversas partes do corpo dos ditos traidores, expondo os corpos “para apontar seus efeitos na vitima e disciplinar as populações resistentes ao poder em vigor” (Silva, 2004: 34). Juan de Cartagena foi o traidor que teve mais sorte. Magalhães não quis matar o homem cujo cargo de capitão de navio lhe foi atribuído pelo Imperador Carlos. Face a isso, optou por deixá-los em exílio na Patagónia.
Retomada a viagem, descobrem “by miracle a strait which we called the Cape of the Eleven Thousand Virgins” (Pigafetta, s. d.: 51).
Neste local encontraram “o mais belo dos portos”. Nele podiam encontrar água bebível, boa madeira, peixe, aipo e erva doce. A 28 de Novembro metem-se no Oceano pacifico, enfrentando a imensidão das suas águas e os problemas que este longo percurso lhes causaria. Magalhães e a sua tripulação permaneceram no mar três meses e vinte dias, sem puderem lançar âncora, alimentando-se dos bens mais impróprios que poderiam haver.

“Comemos biscoitos que já não eram biscoitos mas pó de biscoitos cheios de vermes que tinham devorado a parte melhor, Fedia muito a urina de ratos. Bebemos água amarelada que estava putrefacta há muitos dias. Também recorremos às peles de boi que cobrem o topo do mastro grande e que estavam excessivamente duras por causa do sol, chuva e vento. Deixamo-las de molho no mar durante quatro ou cinco dias e depois pusemo-las por breves momentos em cima das brasas e assim as comemos; e muitas vezes comíamos serradura das tábuas”. (Pigafetta in Saavedra, 2007:34)

Os recursos eram muito escassos e Magalhães, face à imensidão do Oceano Pacifico, desconhecida até então, não se tinha precavido contra a sua grandeza. Assim, os navegadores foram obrigados a se alimentar de produtos indigestos e a apelar à ajuda divina.
Estes navegadores eram extremamente religiosos e, durante a viagem, quando surgia uma tempestade ou quando eles se encontravam em risco, confundiam os reflexos dos raios com a imagem dos santos, tal era a devoção.

During these storms the body of St. Anselm appear to us several times. And among others on a night which was very dark, at a time of bad weather, the said saint appeared in the form of a lighted torch at the height of the maintop, and remained there more than two hours and a half, to the confort of us all. For we were in tears, expecting only the hour of death. And when this holy light was about to leave us, it was so bright to the eyes of all that we were for more than a quarter of an hour as blind men calling for mercy.” (Pigafetta, s.d.: 41-42)

No entanto, nesse momento a ajuda divina tardava em chegar e muitos dos tripulantes foram atacados com escorbuto6, salvando-se somente aqueles que se encontravam no barco de Magalhães que, com a ingestão inconsciente de uma compota de marmelo, acabavam por se medicar contra a dita enfermidade.

“Trinta dos homens ficaram doentes de diversas maleitas, ou dos braços ou das pernas, ou de outras partes do corpo, por isso estavam muito poucos homens saudáveis” (Pigafetta in Saavedra, 2007:35).

Esta doença era bastante usual aquando as longas navegações, visto que a diversidade alimentícia era inexistente e, como tal, as doenças de foro alimentar iam finando grande parte dos navegadores.
Perante esta calamidade e a permanência contínua em mar, contando-se já mais de três meses sem avistar qualquer aglomerado de terra, os navegadores começaram a entrar em desespero, temendo não conseguir chegar a terra com vida.
Na manhã do dia 6 de Março de 1521, alguém avista aquilo que tanto ansiavam e a palavra “terra”, dita com toda a euforia, alertou de imediato toda a tripulação. Finalmente, após noventa e oito dias no mar, os argonautas chegam ao Arquipélago das Marianas, ficando com uma ideia extremamente negativa da tribo que lá residia. Estes, devido ao isolamento demográfico, desconheciam a existência de outros povos e quando se aperceberem da chegada dos barcos desta armada, consideraram esta visita como uma oportunidade para a obtenção de novos produtos. Assim, invadiram os barcos e começaram a furtar tudo quanto encontravam.
Esta comunidade vivia segundo as suas próprias regras, dado que o poder era distribuído de forma uniforme e nenhum dos nativos possuía um papel superior à restante comunidade.
Fisicamente os nativos deveriam ter estatura média pois, segundo Pigafetta (s.d.:60), eram tão altos como eles e eram bem constituídos. Como vestimenta os homens usavam somente chapéus de palha e as mulheres vestiam uma espécie de casca, encontrada entre a madeira e as cascas das árvores, para tapar as partes intimas. Estes nativos têm a pele branca, com um tom bronzeado causado devido às condições climatéricas e cabelos longos. As mulheres, esbeltas, com a sua pele branca e os cabelos negros, untados com óleo de coco, não trabalhavam na lavoura. Estas exerciam a sua actividade no interior das suas habitações, onde faziam panos e caixas de folhas de palmeira.
As suas casas eram feitas à base de madeira, cobertas com tábuas ou placas compostas por folhas de figueira. Os quartos e as camas encontravam-se decoradas com belos tapetes, feitos à base de folhas de palmeiras, dormindo os nativos sobre a palha de palmeira.
Apesar da curta estadia, visto que após a fraca recepção a tripulação levantou âncora de imediato, conseguiram ainda obter, na ilha dos ladrões, como a tripulação a viria a chamar, alguns produtos alimentares necessários para a revitalização do grupo.
A próxima paragem decorreria na ilha de Zuluan, onde viriam a ser recebidos pelo próprio rei da tribo. Este manifestou o seu contentamento relativamente à presença dos argonautas. Face a esta reacção, Magalhães iniciou o ritual das oferendas, oferecendo inicialmente objectos decorativos aos nativos e recebendo em troca alimentos. Entre os produtos recebidos, foram-lhes ofertado cocos, sendo o seu sumo utilizado por Magalhães para alimentar os doentes de escorbuto, alimento que os viria a salvar.
Este povo usava uma vestimenta extremamente ornamentada, em que quanto mais ornamentada fosse maior era o poder do seu utilizador. O estatuto de chefe da tribo era atribuído em consonância com a idade, detendo o elemento mais velho da tribo esse poder. Este usava umas argolas enormes de ouro nas orelhas, enquanto os restantes elementos usavam muitas braceletes e pulseiras nos pulsos.
Era um povo extremamente alegre e sociável, talvez por isso tenha adquirido, através das relações estabelecidas com os chineses e os árabes, conhecimentos sobre o controlo metrológico - através do uso de objectos de medição, como os pesos, medidas e balanças - e a arte da escrita.

As relações comerciais estabelecidas entre os vários grupos étnicos eram extremamente benéficas, tanto para os grupos que acolhiam os náufragos, como para os navegadores, uma vez que para além de poderem obter produtos desconhecidos por eles até ao momento, davam o primeiro passo para o intercâmbio cultural...
No decorrer da viagem, muitos foram os percalços ocorridos... Acidentes náuticos, náufragos, traições, guerrilhas, mortes, fome, doenças, aparecimento de novos povos, novas terras, novas riquezas... Com esta circum-navegação Fernão de Magalhães acabara por demonstrar que o nosso planeta era circular e que havia uma grande diversidade cultural e étnica no nosso planeta...

4-Fernão de Magalhães – Conquistador ou impulsionador do turismo?

Fernão de Magalhães é uma figura lendária e extremamente mítica. Realizou uma das maiores façanhas do seu tempo e colocou o seu nome e o nome de Portugal no livro da história universal pois, apesar da primeira circum-navegação, por ele realizada, ter sido financiada pelo país vizinho, Magalhães era um navegador português e quanto à sua nacionalidade jamais haverão duvidas.
Duvidas restam relativamente à sua naturalidade... Saborosa, até ao momento, tem sido o concelho que mais tem lucrado com a pretensão de que Magalhães descende da comunidade transmontana.
A existência, ainda que sem grande credibilidade, de dois testamentos – um supostamente redigido a mando de Fernão de Magalhães e outro aparentemente escrito por Francisco de Silva Teles, designando-se sobrinho-neto de Fernão de Magalhães – levaram a que os investigadores afirmassem que o navegador era natural de Sabrosa.
No primeiro testamento, supostamente redigido a mando de Fernão de Magalhães, no dia 17 de Dezembro de 1504, encontrando-se nas folhas oitenta e nove de um livro antigo sem titulo, visto as folhas se encontrarem rasgadas no mesmo principio, nomeando por sua única herdeira a sua irmã.

“Thereza de Magalhães e o seu Marido João da Silva Teles, senhor da Caza da Pereira de Sabroza, e a seu filho e meu sobrinho Luiz Telles da Silva e seus sucessores e herdeiros (...) para o que a Vinculo a minha quinta de Souta, que está no mesmo termo de Sabroza, e será perpetuamente padroado leigo, que se conservará sempre para memoria de nossa Familia”
(Veloso, 1938: 7)

No segundo testamento, intitulado como “testamento de Francisco da Silva Teles”, localizado no mesmo livro, nas páginas cento e trinta e três verso, datando três de Abril de 1580, refere o seguinte;

“... nomeio por meus unicos e universais herdeiros meu Filho Antonio da Silva de Magalhães de Faria e o meu Neto, filho do sobredito meu Filho, Gonçalo Alvares Moreira da Silva, para que nelles e em todos os seus descendentes se conserve a caza da Pedreira de Sabroza, de que agora sou senhor, e a quinta de Souta... mando e ordeno a todos os meus descendentes e herdeiros que na minha caza da Pedreira de Sabroza não ponhão outra pedra de Armas nem acrescentem outro Brazão, porque quero que em todo o tempo se conservem picadas e razas, do mesmo modo que as mandou por o nosso Senhor Rei, pello delito de Fernando de Magalhaens se passar a Castella em desserviço deste Reino, a descobrir novas terras, onde morreu em dezagrado do Nosso Rei; e como ele era Irmão de minha Avó Dona Thereza de Magalhaens, se mandaram picar as Armas...”
(Veloso, 1938: 8)

A descoberta destes testamentos originaram a criação e a propagação de um conhecimento irrisório pois, após a sua leitura, Ferdinand Denis1, em 1860, e pouco tempo depois Diogo Barros de Arana2, afirmaram que Magalhães era transmontano, natural de Sabrosa. Esta falácia permaneceu, durante muitas décadas, como uma verdade incontestável e, os investigadores que se interessavam pela vida e viagem de Fernão de Magalhães referiam-se ao investigador como sendo natural desse concelho transmontano. Esta “certeza” originou a sua afirmação em inúmeras fontes bibliográficas visto que o objectivo desses autores não se prendia a desvelar a sua naturalidade mas sim a analisar a sua história de vida enquanto navegador.
De qualquer modo, este testamento, ainda que fosse considerado verdadeiro, nada prova relativamente à sua naturalidade, quando muito demonstra que Magalhães, em 1505, era o proprietário da Quinta de Souta, localizada em Sabrosa, e tinha familiares a residir nesse concelho.
Este erro cientifico criou um grande impacto na vila de Sabrosa que, ao defender e recriar esta mentira, criou um grande atractivo turístico.
Com a chegada de alguns escritores mais curiosos, entre eles Francisco Manuel Alves, D. José Manuel de Noronha, Dr. António Baião, Sousa Viterbo e Queirós Veloso, realizou-se uma análise aprofundada aos respectivos testamentos e muitos foram os argumentos que fundamentaram a sua ilegitimidade. Porém, esta nova versão retirava a Sabrosa a legitimidade necessária para reclamar a naturalidade de Magalhães e abria agora novas hipóteses, aproximando o navegador do Minho, tendo a hipótese de Ponte da Barca mais credibilidade.

“... a naturalidade minhota do glorioso navegador é, incontestavelmente, a hipótese que reúne mais positivas e reais condições de veracidade”
(Queirós, 1938:35)

Todavia, esta nova alternativa não fez com que Sabrosa perdesse os seus louvores pois, como refere Almeida (2009) “quando uma coisa é muitas vezes repetida, mesmo que se prove não ser verdadeira, acaba por se manter”. Por consequência, a localidade que se auto-denomina como “Terra de Fernão de Magalhães” continuou a recriar o mito sobre a sua ligação ao navegador, afirmando que “o nome de Fernão de Magalhães está directamente ligado à identidade cultural deste concelho transmontano”.
Está preocupação não se prende, de modo algum, à necessidade de alcançar um conhecimento histórico, rigorosamente fundado, sobre a vida e obra do navegador, prende-se sim ao interesse de interligar o navegador à memória cultural deste povo pois, trata-se de uma figura lendária que pode trazer muitos benefícios para a sua região de descendência.
Assim sendo, o nome desta personagem deixou de ser empregue somente para homenagear as suas magnificas habilidades náuticas para ser agora encarado também como uma estratégia de marketing, com vista a “promover o concelho de Sabrosa, a região do Douro e Portugal”6. Não é por acaso que, nessa localidade, todos os eventos culturais giram em torno do grande navegador, Fernão de Magalhães pois, como refere o próprio presidente de Sabrosa,

“O nome de Fernão de Magalhães permite abrir imensas portas em vários domínios, nomeadamente económico, político e cultural (...) é fundamental «tirar partido dos nomes de Fernão de Magalhães e de Miguel Torga» para conseguir simultaneamente, «promover o vinho e o turismo»”.

E diga-se de passagem, que este Presidente conseguiu colocar o nome Sabrosa, bem como os produtos desta região, em circulação nas Filipinas pois, o uso do nome Magalhães é o suficiente para que este povo acolha bem os produtos vindos do seu suposto “berço”...

“Os dados do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto (IVDP) revelam que, em 2007, foram vendidas, por exportação directa para as Filipinas, 342 litros de vinho do Porto”.

O seu mandato tem como estratégia política a criação de focos de atracção para a recepção de turistas, vindos dos diferentes cantos do mundo, visto que, segundo afirmam, não existe nome melhor do que o de Magalhães para o conseguirem. Desse modo, em Sabrosa tem ocorrido um uso abusivo do nome do navegador. Só para exemplificar, no passado dia 13 de Dezembro de 2008, decorreu um torneio de xadrez, organizado por uma associação local, tendo-se saído vitoriosa a equipa de Sabrosa, cujo nome escolhido para a equipa foi, “Fernão de Magalhães”. Todavia, este exemplo apenas demonstra o furor existente nesta localidade relativamente à personagem em questão e não exemplifica os benefícios trazidos a este concelho.
Até ao momento, José Marques, presidente da Câmara Municipal de Sabrosa, tem procurado expandir a existência de “uma casa que possui o brasão de Magalhães, mandado picar pelo rei D. Manuel”, no seu concelho. A defesa desta ideia assenta no conteúdo dos testamentos referidos anteriormente e, devido à sua falta de autenticidade, não há qualquer prova da pertença desta casa à família do navegador. No entanto, as teorias dos residentes de Sabrosa, contribuem para que inúmeros turistas, movidos pelo fervor do navegador, se desloquem a este concelho para visitar “a casa onde nascera Magalhães”.
Ciente de todos estes benefícios como poderá José Marques admitir que não há um único documento autêntico que comprove que Sabrosa não é, de modo algum, “a terra de Magalhães”?
Por ser tão benéfico designar Sabrosa como “a terra de Magalhães”, o Presidente da Câmara de Sabrosa, continua a defender, cegamente, essa “certeza”, mencionando os investigadores que continuam a insistir em Sabrosa como berço de Magalhães.

“...ainda há pouco tempo foi publicada mais uma obra (do historiador norte-americano Laurence Bergreen), onde está claramente assumido que Fernão de Magalhães é oriundo de Sabrosa” (Oliveira, 2007:27)

Certo é que após a análise de inúmeros documentos que mencionam a existência de familiares do navegador na localidade de Ponte da Barca, o presidente desta comarca, Vassalo Abreu, decidiu lutar pela descoberta da sua verdadeira naturalidade pois, tudo leva a crer que o responsável pela primeira circum-navegação tem as mesmas origens que a comunidade barquense.
Desde então, de olhar atento sobre as pesquisas que procuravam desvendar a naturalidade do navegador, Vassalo Abreu afirmou que vários investigadores “provaram com absoluta certeza que Fernão de Magalhães não nasceu em Sabrosa”.

Em forma de sintese, deixo aqui esta citação:
Devemos “orgulhosamente afirmar a raíz Barquense de personalidades das mais diversas formas ilustres, dos homens e dos factos que, enriquecendo o nosso passado, são os húmus mais profundo do presente que hoje somos, a argamassa, a indispensável identidade do nosso devir colectivo”.(Guimarães, 1992: 4)

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Visão da Mulher na micro sociedade de Grade – Arcos de Valdevez Por: Susy Almeida



1.Introdução

Ao longo das últimas décadas, tem-se desenvolvido uma reflexão teórica, em torno do género, de extrema importância. Nesta abordagem, têm sido analisadas as diferentes formas de poder e as desigualdades de género criadas sócio-culturalmente.
Com estes estudos, tem-se verificado que a discriminação de género é uma realidade, embora não seja igualmente perceptível em todos os contextos e em todas as comunidades.
Verificamos também uma diminuição, ao longo das últimas décadas, da discriminação sexual, visto que a mulher tem lutado pela igualdade de direitos. Porém, a desigualdade do género continua a persistir, embora de forma menos perceptível.
No início do ano de 2008, iniciei uma investigação na freguesia de Grade, uma localidade situada a 5 km de Arcos de Valdevez para nascente e, segundo a definição de Gomes (1903:74), limitada a norte por Carralcova e Gondoriz, a leste por Cabana Maior, a sul pelo Vale e a oeste por Azere e Couto. Esta freguesia agrega uma área total de 4,6 km² e, segundo os sensos de 2001, conta com cerca de 402 habitantes, dos quais 178 são homens e 224 são mulheres.
Esta investigação, financiada pela Associação Cultural e Desportiva de Grade, foi realizada com o intuito de contribuir para a recolecção das memórias das pessoas mais idosas, procurando divulgar, através das mesmas, os usos e costumes da freguesia.
Todavia, quando se realiza uma investigação para uma associação local, na qual os membros se encontram demasiado embrulhados nos usos e costumes locais, fica-se condicionado, em muito, na informação a transmitir aquando a edição de um estudo por eles financiado. Assim, abordar a existência da discriminação de género só é possível fazê-lo ao de leve e, torna-se necessário evitar o uso da designação “discriminação”, visto que para esta comunidade não existe qualquer discriminação entre o homem e a mulher visto que cada um nasce para o que nasce.
Assim sendo, aproveito agora para deixar aqui algumas reflexões sobre a forma inconsciente como as mulheres gradenses vivem a discriminação de género.

2.Divisão do trabalho em consonância com o género


No decorrer desta investigação, verifiquei que a discriminação de género não permanece somente na memória das gentes locais, como a comunidade fazia crer, continuando a persistir no seu quotidiano.
Através das informantes do sexo feminino procurei saber como era e como são repartidas as 24h dos seus dias e, ainda que estabelecendo a dicotomia passado/presente, as mulheres mais velhas continuam a manter o mesmo estilo de vida. Passo a explicar, as mulheres gradenses com idades acima dos 50 anos, continuam a adoptar os mesmos comportamentos de outrora, fazendo os mesmos trabalhos, vendo as relações sexuais de igual forma, frequentando os mesmos espaços de socialização (lojas comerciais da freguesia), e limitando o seu espaço e a sua participação aqueles que são socialmente permitidos.
Face a isso, a discriminação de género é visível, na comunidade gradense, segundo vários níveis. O sector doméstico, desde sempre esteve associado à mulher, a qual tinha como objectivo o cuidado da casa, a criação dos filhos e a confecção dos alimentos.

"A mulher era doméstica, mãe, ajudava a trabalhar nos campos, cabia à mulher a alimentação do gado… Enfim, as mulheres tinham as tarefas mais árduas. Na lavoura, por exemplo, o transporte das uvas era realizado pelas mulheres, em cestos de 4 rasas… Os homens eram diferenciados na alimentação em que às vezes duas mulheres comiam num só prato…"
A mulher era considerada como dependente do marido, em que, até aos anos 60, não podiam sair do país sem a autorização destes (Informante, 50-60 anos).

Assim, muitas mulheres acordavam, pelos menos uma vez por semana, por volta das 5h da manhã, para confeccionar a broa de milho e centeio. Enquanto que o pão ficava a levedar as mulheres iam alimentar os animais, regressando três horas depois para colocar o pão do forno.

No mundo laboral, é perceptível uma divisão do trabalho em consonância com o género, quer seja no passado, como no presente. Assim, só as mulheres cuidavam da casa e dos filhos, alimentavam os animais, faziam as cegadas da erva, as eiras tradicionais (feitas com excrementos de vaca), carregavam as uvas, faziam carvão e vassouras de giesta, teciam e fiavam. Os homens, em contrapartida, eram responsáveis pela poda, pela apanha das uvas através do uso da escada, pela pisada e pelos ofícios exteriores à habitação, como é o caso do oficio de serrador, lenhador, pedreiro, entre outros.

Geralmente, os trabalhos associados ao homem relacionam-se com o facto de exigirem uma maior força física, inerente ao elemento masculino, no entanto, essa situação nem sempre se verifica. No caso das vindimas, as mulheres limitam-se a apanhar as uvas que estão ao seu alcance e a carregarem os cestos, no passado eram cestos de 4 rasas. Para quem já viu vindimar, ou já executou esta tarefa, com certeza tem conhecimento de que a actividade mais penosa é o transporte das uvas. Então porque motivo é que, tanto no passado como no presente, o transporte das uvas é executado pelas mulheres, tendo geralmente esta menos força física?
Segundo a comunidade gradense, este motivo deve-se ao facto das mulheres não poderem subir escadas, devido ao uso das saias e, assim sendo, cabe aos homens apanhar a as uvas das videiras mais altas e às mulheres o transporte das uvas.


Porém, visto que houve uma mudança no vestuário das mulheres e, independentemente da idade, as mulheres também já usam calças, esta transformação deveria ter provocado uma mudança de comportamentos. Todavia, isso não se verifica. As mulheres continuam a apanhar as uvas que se encontram ao seu alcance, a transportá-las, actualmente em cestos de menor capacidade, e a ralá-las. Contudo, caso as vindimas sejam realizadas somente por elementos do sexo feminino, é visível uma execução das diferentes tarefas da produção do vinho, incluindo a poda, a apanha, o transporte das uvas e a pisada.



3.Religião – A sua contribuição para a discriminação de género

A religião tem sido confrontada com diversas mudanças ao longo dos séculos, sendo exemplo disso o modo como a missa passou a ser celebrada.
Outrora, para além da missa ser solenizada em latim e do padre dar o sermão de costas para os paroquianos e de frente para o altar, o espaço interior da igreja era ocupado de uma forma bastante distinta pois, segundo defende Caldas (1994:233), “havia uma arrumação das classes sociais e dos sexos”.
Eram inúmeras as regras referentes à ocupação deste espaço. Visto ser um local divino, os homens não poderiam entrar com chapéu na igreja e, as mulheres, não poderiam se apresentar sem que a sua cabeça estivesse tapada por um lenço. Para além da vestimenta, que deveria ser de “respeito”, havia também uma separação espacial, consoante o género.
Como é sabido, as mulheres, no decorrer de vários anos, foram vítimas de discriminação sexual e, como tal, no contexto religioso, também é visível essa distinção.
Antigamente, o espaço interior da igreja encontrava-se dividido, separando os homens das mulheres, através de uma grade composta por dois portões de ferro. Os homens entravam pela sacristia e ouviam o sermão na capela-mor, as mulheres, por sua vez, entravam pela porta principal, ocupando o corpo da igreja e, deste modo, permaneciam mais afastadas do altar.
Como refere Laforte (2003: 225)“…a mulher mantém-se, geralmente, numa posição subordinada relativamente à liderança dos rituais religiosos”. Exemplo disso é o facto de grande parte dos eventos religiosos serem protagonizados pelos elementos do sexo masculino.
Evidencia-se esta distinção no transporte de determinados objectos religiosos, como o transporte do palio, das bandeiras, da cruz na altura da Páscoa e da realização de determinadas festas religiosas, como é o caso da festa do Santo lenho. Esta festividade, considerada como a mais importante da freguesia, só pode ser realizada por homens casados.
A única festa da freguesia, realizada pelos elementos do sexo feminino, é a festa em honra da nossa Sra. da Luz. Esta é uma das festas com menos popularidade na localidade.
No passado, existiam duas confrarias na freguesia de Grade, a confraria do Santo Lenho e a confraria do Santíssimo Sacramento, cujos elementos teriam de ser, obrigatoriamente, do sexo masculino.

Porém, apesar da diferenciação, as mulheres sempre zelaram pela igreja, juntamente com o mordomo, visto que, em Grade, sempre houve um grande respeito pelas imagens santificadas pois, crê-se que as mesmas asseguram o bem-estar espiritual e conduzem as nossas acções.

4.Rituais fúnebres – Demonstração da submissão da mulher


Outra diferenciação visível nesta comunidade, que demonstra a submissão da mulher ao seu marido, é a postura adoptada aquando a morte do cônjuge. Na morte do marido, a sua esposa fica numa posição de “liminalidade permanente”, usando o preto, em todo o seu vestuário, durante toda a vida. Em oposição, quando morre a esposa, não há qualquer regra social que implique uma mudança de comportamento por parte do marido.

5.Sexualidade – Condicionalismos culturais

A sexualidade continua a ser tabu em muitas zonas rurais e, em Grade, essa situação não é diferente. Falar sobre relações sexuais, com as mulheres gradenses, é uma missão quase que impossível e os argumentos conseguidos, demonstram somente a imagem que as mulheres pretendem passar. Assim, ocultando os casos de que podem “envergonhar” a comunidade, limitam-se a dizer que antigamente namorar não era como agora, tocar numa mulher era somente após o casamento (Informante, 80 anos).
Porém, com a minha permanência no terreno, as pessoas começaram a se abrir mais, mencionando casos alheios que tenham sido bastante criticados na comunidade. Os homens, por sua vez, são mais transparentes, visto que a existência de uma vida “sexualmente activa” nos elementos do sexo masculino, é vista como algo a louvar e não como uma desonra, como acontece nas mulheres.
Os homens, quando descrevem a sua vida sexual na infância, usam a designação fazer forninhos e, segundo os mesmos, se as grutas falassem, teriam muitas histórias para contar… Informante (38 anos)
Há cerca de 30 anos atrás, grande parte das mulheres cresciam sem qualquer conhecimento sobre sexualidade e menstruação, uma vez que as suas progenitoras tinham vergonha de abordar essas temáticas, declinando assuntos referentes à própria génese do ser humano. Como tal, com a chegada da menstruação, designada pelas mulheres gradenses de regras, as mulheres sentiam-se aterrorizadas, uma vez que, desconhecendo aquela realidade, pensavam ter alguma doença.

Quando me chegaram as regras eu fiquei em pânico. Nunca me tinham falado naquilo e eu ao ver sangue pensei que me tinha rebentado alguma coisa por dentro. Fui contar à minha irmã, que era mais velha do que eu e ela disse-me, “é normal…agora cala-te”. E eu fiquei sem saber o que tinha acontecido. Antigamente não se sabia nada sobre as regras… (Informante, 64 anos)

O aparecimento das regras era ocultado pelas raparigas, que acreditavam se tratar de algo indigno e, como tal, deveria ser omitido.
Conhecedores de que a chegada das regras e o início da sexualidade era uma forma de desonrar a família, as mães controlavam os namoricos das suas descendentes. Durante os serões1, por exemplo, as mães faziam-se acompanhar pelas suas filhas, para que as mesmas fossem dadas a conhecer aos rapazes e para que os namoricos decorressem sobre o olhar atento das suas mães.

Antigamente, nos namoros conversava-se e ninguém tocava em ninguém… Sem ir ao altar não havia nada para ninguém… Muitos namoros começavam nos sarões, em que vinham rapazes de todo o lado. Nos sarões, depois do trabalho, as mulheres ofereciam aos rapazes castanhas, nozes, figos e maças… As cartas de amor eram colocadas nos buracos da parede, em que já estava combinado o local (Informante, 79 anos).

No entanto, apesar de toda essa protecção, tal como acontece em outros contextos sociais, nem todas as raparigas conseguiam preservar-se para o futuro marido uma vez que as mudanças físicas despertavam os seus impulsos sexuais.
Muitas vezes a sexualidade era iniciada durante as brincadeiras entre os jovens, uma vez que a sua curiosidade levava-os a persistir na brincadeira de “pais e filhos”.
Quando nascia uma criança fora do casamento, esta era descrita pelo pároco, no livro dos nascimentos, como “filha de pai incógnito”, ficando a recém-nascida e a sua família marcada negativamente pela comunidade em questão.

Costumávamos brincar aos forninhos. Nós já tínhamos sítios combinados, onde deixávamos um papel a informar onde era o local de encontro. Tínhamos um buraco combinado onde deixávamos o correio. Depois da escola eu chegava a casa e dizia ao meu pai que ia com os animais para o monte. Encontrávamo-nos lá. Às vezes éramos dois rapazes e duas raparigas e brincávamos aos forninhos… Era assim, era como brincar às escondidas. As raparigas escolhiam, cada uma, uma corte e começavam a fazer a casa, em que faziam uma cama. Nós, os rapazes, tínhamos de ir procurá-las. A rapariga que encontrássemos primeiro era aquela com quem ficávamos e depois, brincávamos ao marido e mulher. Deitávamo-nos e pronto, fazíamo-nos forninhos (Informante, 54 anos).

As histórias contadas pelos homens vêm a asseverar a teoria de que não é a namorar à janela que os filhos incógnitos nascem e que, tal como na actualidade, relações sexuais também existiam na adolescência. Ao contrário do que acontece na modernidade, a divulgação dos meios contraceptivos não existia e, face a isso, usava-se o coito interrompido e o aborto para evitar a desonra da família. Conta-se na freguesia que há algumas décadas atrás, uma mulher solteira engravidou. Esta, procurando evitar as críticas da comunidade, ocultou a gravidez ao longo da gestação e quando deu à luz, em acto de desespero, pôs fim à vida da criança. Poucos dias depois apareceu um cão transportando um braço de uma criança na boca. O regedor da freguesia, tendo conhecimento do caso, procedeu à análise ginecológica de grande parte das mulheres da freguesia, procurando identificar qual delas teria dado à luz recentemente2.
Este comportamento é justificável do ponto de vista histórico e cultural pois, o receio sentido pela mesma fê-la crer que a única forma de evitar a condenação comunitária, pelo pecado carnal, seria a ocultação do fruto desse delito. Honório (s/d: 2) alerta-nos para o facto de devermos analisar a sexualidade como uma construção sócio-cultural pois, “a sexualidade é uma construção e como construção é historicamente determinada social e culturalmente: onde se aprendem atribuições ou significados para vivências, práticas e experiências sexuais”.
O facto da religião católica punir a sexualidade originou, entre o séc. XVI e o séc. XX, a repulsa do contacto sexual por prazer, adoptando assim uma postura de repressão e censura da sexualidade, devendo esta ser utilizada somente após o matrimónio legitimo, entre os conjugues, e tendo como objectivo a procriação. Este pensamento ainda permanece nos residentes mais velhos da freguesia que acabam por criticar a liberdade sexual existente presentemente, defendendo os princípios de que deverá permanecer um “controle social da conduta sexual feminina e uma liberdade sexual masculina” (Honório, s/d:2).
Tal como refere Simone Monteiro (in Honório, s/d:2) quando se analisam as relações entre género e a sexualidade verifica-se que as mulheres têm uma tendência para “o controle da conduta sexual, valorização da virgindade e uma ligação entre sexo e vínculo amoroso”, enquanto os homens associam a sexualidade à virilidade. Assim, a sexualidade é descrita em consonância com a “hierarquia de géneros” (Honório, s/d:2) em que, como refere Laforte (2003:201) “…a sexualidade não apenas produz um indivíduo social, mas legitima através das suas regras formas diversas de dominação masculina e desigualdade de poder”.
Face a esta dominação masculina e descriminação feminina, no passado, existia uma maior preocupação, por parte das jovens, em evitar qualquer tipo de contacto íntimo em público, de modo a fugir à difamação. Por conseguinte, as pessoas mais idosas teimam em manter uma imagem integra face ao seu passado, ocultando a existência de experiências sexuais antes do casamento e mencionando que muitas vezes o namoro era iniciado através da troca da correspondência ou aquando os trabalhos agrícolas, visto que o namoro “teria sempre ocorrido de forma espontânea, nas fainas agrárias, no cruzamento dos caminhos, intencionalmente à vista de toda a gente, ou na sombra dos arvoredos, o que teria o tom pecaminoso…” (Caldas, 1994:332).


Bibliografia:

Almeida, Susana, 2009, Vidas Vividas, Experiências Acrescidas. Arcos de Valdevez, Associação Cultural e Desportiva de Grade
Caldas, Eugénio de Castro, 1994, Terra de Valdevez e Montaria de Soajo. S/,L Editorial Verbo
Gomes, José Cândido, 1903, As terras de Valdovêz. Guimarães, Typ. Minerva Vimaranense
HONÓRIO, Maria das Dores, s/d, “Sexualidade, género e reprodução na Juventude – ST 28” [online] Disponível em (acesso em 25-07-2008)
Laforte, Ana Maria, 2003, Género e Poder entre os Tsonga de Moçambique. Lisboa, Ed. Ela por ela