sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Visão da Mulher na micro sociedade de Grade – Arcos de Valdevez Por: Susy Almeida



1.Introdução

Ao longo das últimas décadas, tem-se desenvolvido uma reflexão teórica, em torno do género, de extrema importância. Nesta abordagem, têm sido analisadas as diferentes formas de poder e as desigualdades de género criadas sócio-culturalmente.
Com estes estudos, tem-se verificado que a discriminação de género é uma realidade, embora não seja igualmente perceptível em todos os contextos e em todas as comunidades.
Verificamos também uma diminuição, ao longo das últimas décadas, da discriminação sexual, visto que a mulher tem lutado pela igualdade de direitos. Porém, a desigualdade do género continua a persistir, embora de forma menos perceptível.
No início do ano de 2008, iniciei uma investigação na freguesia de Grade, uma localidade situada a 5 km de Arcos de Valdevez para nascente e, segundo a definição de Gomes (1903:74), limitada a norte por Carralcova e Gondoriz, a leste por Cabana Maior, a sul pelo Vale e a oeste por Azere e Couto. Esta freguesia agrega uma área total de 4,6 km² e, segundo os sensos de 2001, conta com cerca de 402 habitantes, dos quais 178 são homens e 224 são mulheres.
Esta investigação, financiada pela Associação Cultural e Desportiva de Grade, foi realizada com o intuito de contribuir para a recolecção das memórias das pessoas mais idosas, procurando divulgar, através das mesmas, os usos e costumes da freguesia.
Todavia, quando se realiza uma investigação para uma associação local, na qual os membros se encontram demasiado embrulhados nos usos e costumes locais, fica-se condicionado, em muito, na informação a transmitir aquando a edição de um estudo por eles financiado. Assim, abordar a existência da discriminação de género só é possível fazê-lo ao de leve e, torna-se necessário evitar o uso da designação “discriminação”, visto que para esta comunidade não existe qualquer discriminação entre o homem e a mulher visto que cada um nasce para o que nasce.
Assim sendo, aproveito agora para deixar aqui algumas reflexões sobre a forma inconsciente como as mulheres gradenses vivem a discriminação de género.

2.Divisão do trabalho em consonância com o género


No decorrer desta investigação, verifiquei que a discriminação de género não permanece somente na memória das gentes locais, como a comunidade fazia crer, continuando a persistir no seu quotidiano.
Através das informantes do sexo feminino procurei saber como era e como são repartidas as 24h dos seus dias e, ainda que estabelecendo a dicotomia passado/presente, as mulheres mais velhas continuam a manter o mesmo estilo de vida. Passo a explicar, as mulheres gradenses com idades acima dos 50 anos, continuam a adoptar os mesmos comportamentos de outrora, fazendo os mesmos trabalhos, vendo as relações sexuais de igual forma, frequentando os mesmos espaços de socialização (lojas comerciais da freguesia), e limitando o seu espaço e a sua participação aqueles que são socialmente permitidos.
Face a isso, a discriminação de género é visível, na comunidade gradense, segundo vários níveis. O sector doméstico, desde sempre esteve associado à mulher, a qual tinha como objectivo o cuidado da casa, a criação dos filhos e a confecção dos alimentos.

"A mulher era doméstica, mãe, ajudava a trabalhar nos campos, cabia à mulher a alimentação do gado… Enfim, as mulheres tinham as tarefas mais árduas. Na lavoura, por exemplo, o transporte das uvas era realizado pelas mulheres, em cestos de 4 rasas… Os homens eram diferenciados na alimentação em que às vezes duas mulheres comiam num só prato…"
A mulher era considerada como dependente do marido, em que, até aos anos 60, não podiam sair do país sem a autorização destes (Informante, 50-60 anos).

Assim, muitas mulheres acordavam, pelos menos uma vez por semana, por volta das 5h da manhã, para confeccionar a broa de milho e centeio. Enquanto que o pão ficava a levedar as mulheres iam alimentar os animais, regressando três horas depois para colocar o pão do forno.

No mundo laboral, é perceptível uma divisão do trabalho em consonância com o género, quer seja no passado, como no presente. Assim, só as mulheres cuidavam da casa e dos filhos, alimentavam os animais, faziam as cegadas da erva, as eiras tradicionais (feitas com excrementos de vaca), carregavam as uvas, faziam carvão e vassouras de giesta, teciam e fiavam. Os homens, em contrapartida, eram responsáveis pela poda, pela apanha das uvas através do uso da escada, pela pisada e pelos ofícios exteriores à habitação, como é o caso do oficio de serrador, lenhador, pedreiro, entre outros.

Geralmente, os trabalhos associados ao homem relacionam-se com o facto de exigirem uma maior força física, inerente ao elemento masculino, no entanto, essa situação nem sempre se verifica. No caso das vindimas, as mulheres limitam-se a apanhar as uvas que estão ao seu alcance e a carregarem os cestos, no passado eram cestos de 4 rasas. Para quem já viu vindimar, ou já executou esta tarefa, com certeza tem conhecimento de que a actividade mais penosa é o transporte das uvas. Então porque motivo é que, tanto no passado como no presente, o transporte das uvas é executado pelas mulheres, tendo geralmente esta menos força física?
Segundo a comunidade gradense, este motivo deve-se ao facto das mulheres não poderem subir escadas, devido ao uso das saias e, assim sendo, cabe aos homens apanhar a as uvas das videiras mais altas e às mulheres o transporte das uvas.


Porém, visto que houve uma mudança no vestuário das mulheres e, independentemente da idade, as mulheres também já usam calças, esta transformação deveria ter provocado uma mudança de comportamentos. Todavia, isso não se verifica. As mulheres continuam a apanhar as uvas que se encontram ao seu alcance, a transportá-las, actualmente em cestos de menor capacidade, e a ralá-las. Contudo, caso as vindimas sejam realizadas somente por elementos do sexo feminino, é visível uma execução das diferentes tarefas da produção do vinho, incluindo a poda, a apanha, o transporte das uvas e a pisada.



3.Religião – A sua contribuição para a discriminação de género

A religião tem sido confrontada com diversas mudanças ao longo dos séculos, sendo exemplo disso o modo como a missa passou a ser celebrada.
Outrora, para além da missa ser solenizada em latim e do padre dar o sermão de costas para os paroquianos e de frente para o altar, o espaço interior da igreja era ocupado de uma forma bastante distinta pois, segundo defende Caldas (1994:233), “havia uma arrumação das classes sociais e dos sexos”.
Eram inúmeras as regras referentes à ocupação deste espaço. Visto ser um local divino, os homens não poderiam entrar com chapéu na igreja e, as mulheres, não poderiam se apresentar sem que a sua cabeça estivesse tapada por um lenço. Para além da vestimenta, que deveria ser de “respeito”, havia também uma separação espacial, consoante o género.
Como é sabido, as mulheres, no decorrer de vários anos, foram vítimas de discriminação sexual e, como tal, no contexto religioso, também é visível essa distinção.
Antigamente, o espaço interior da igreja encontrava-se dividido, separando os homens das mulheres, através de uma grade composta por dois portões de ferro. Os homens entravam pela sacristia e ouviam o sermão na capela-mor, as mulheres, por sua vez, entravam pela porta principal, ocupando o corpo da igreja e, deste modo, permaneciam mais afastadas do altar.
Como refere Laforte (2003: 225)“…a mulher mantém-se, geralmente, numa posição subordinada relativamente à liderança dos rituais religiosos”. Exemplo disso é o facto de grande parte dos eventos religiosos serem protagonizados pelos elementos do sexo masculino.
Evidencia-se esta distinção no transporte de determinados objectos religiosos, como o transporte do palio, das bandeiras, da cruz na altura da Páscoa e da realização de determinadas festas religiosas, como é o caso da festa do Santo lenho. Esta festividade, considerada como a mais importante da freguesia, só pode ser realizada por homens casados.
A única festa da freguesia, realizada pelos elementos do sexo feminino, é a festa em honra da nossa Sra. da Luz. Esta é uma das festas com menos popularidade na localidade.
No passado, existiam duas confrarias na freguesia de Grade, a confraria do Santo Lenho e a confraria do Santíssimo Sacramento, cujos elementos teriam de ser, obrigatoriamente, do sexo masculino.

Porém, apesar da diferenciação, as mulheres sempre zelaram pela igreja, juntamente com o mordomo, visto que, em Grade, sempre houve um grande respeito pelas imagens santificadas pois, crê-se que as mesmas asseguram o bem-estar espiritual e conduzem as nossas acções.

4.Rituais fúnebres – Demonstração da submissão da mulher


Outra diferenciação visível nesta comunidade, que demonstra a submissão da mulher ao seu marido, é a postura adoptada aquando a morte do cônjuge. Na morte do marido, a sua esposa fica numa posição de “liminalidade permanente”, usando o preto, em todo o seu vestuário, durante toda a vida. Em oposição, quando morre a esposa, não há qualquer regra social que implique uma mudança de comportamento por parte do marido.

5.Sexualidade – Condicionalismos culturais

A sexualidade continua a ser tabu em muitas zonas rurais e, em Grade, essa situação não é diferente. Falar sobre relações sexuais, com as mulheres gradenses, é uma missão quase que impossível e os argumentos conseguidos, demonstram somente a imagem que as mulheres pretendem passar. Assim, ocultando os casos de que podem “envergonhar” a comunidade, limitam-se a dizer que antigamente namorar não era como agora, tocar numa mulher era somente após o casamento (Informante, 80 anos).
Porém, com a minha permanência no terreno, as pessoas começaram a se abrir mais, mencionando casos alheios que tenham sido bastante criticados na comunidade. Os homens, por sua vez, são mais transparentes, visto que a existência de uma vida “sexualmente activa” nos elementos do sexo masculino, é vista como algo a louvar e não como uma desonra, como acontece nas mulheres.
Os homens, quando descrevem a sua vida sexual na infância, usam a designação fazer forninhos e, segundo os mesmos, se as grutas falassem, teriam muitas histórias para contar… Informante (38 anos)
Há cerca de 30 anos atrás, grande parte das mulheres cresciam sem qualquer conhecimento sobre sexualidade e menstruação, uma vez que as suas progenitoras tinham vergonha de abordar essas temáticas, declinando assuntos referentes à própria génese do ser humano. Como tal, com a chegada da menstruação, designada pelas mulheres gradenses de regras, as mulheres sentiam-se aterrorizadas, uma vez que, desconhecendo aquela realidade, pensavam ter alguma doença.

Quando me chegaram as regras eu fiquei em pânico. Nunca me tinham falado naquilo e eu ao ver sangue pensei que me tinha rebentado alguma coisa por dentro. Fui contar à minha irmã, que era mais velha do que eu e ela disse-me, “é normal…agora cala-te”. E eu fiquei sem saber o que tinha acontecido. Antigamente não se sabia nada sobre as regras… (Informante, 64 anos)

O aparecimento das regras era ocultado pelas raparigas, que acreditavam se tratar de algo indigno e, como tal, deveria ser omitido.
Conhecedores de que a chegada das regras e o início da sexualidade era uma forma de desonrar a família, as mães controlavam os namoricos das suas descendentes. Durante os serões1, por exemplo, as mães faziam-se acompanhar pelas suas filhas, para que as mesmas fossem dadas a conhecer aos rapazes e para que os namoricos decorressem sobre o olhar atento das suas mães.

Antigamente, nos namoros conversava-se e ninguém tocava em ninguém… Sem ir ao altar não havia nada para ninguém… Muitos namoros começavam nos sarões, em que vinham rapazes de todo o lado. Nos sarões, depois do trabalho, as mulheres ofereciam aos rapazes castanhas, nozes, figos e maças… As cartas de amor eram colocadas nos buracos da parede, em que já estava combinado o local (Informante, 79 anos).

No entanto, apesar de toda essa protecção, tal como acontece em outros contextos sociais, nem todas as raparigas conseguiam preservar-se para o futuro marido uma vez que as mudanças físicas despertavam os seus impulsos sexuais.
Muitas vezes a sexualidade era iniciada durante as brincadeiras entre os jovens, uma vez que a sua curiosidade levava-os a persistir na brincadeira de “pais e filhos”.
Quando nascia uma criança fora do casamento, esta era descrita pelo pároco, no livro dos nascimentos, como “filha de pai incógnito”, ficando a recém-nascida e a sua família marcada negativamente pela comunidade em questão.

Costumávamos brincar aos forninhos. Nós já tínhamos sítios combinados, onde deixávamos um papel a informar onde era o local de encontro. Tínhamos um buraco combinado onde deixávamos o correio. Depois da escola eu chegava a casa e dizia ao meu pai que ia com os animais para o monte. Encontrávamo-nos lá. Às vezes éramos dois rapazes e duas raparigas e brincávamos aos forninhos… Era assim, era como brincar às escondidas. As raparigas escolhiam, cada uma, uma corte e começavam a fazer a casa, em que faziam uma cama. Nós, os rapazes, tínhamos de ir procurá-las. A rapariga que encontrássemos primeiro era aquela com quem ficávamos e depois, brincávamos ao marido e mulher. Deitávamo-nos e pronto, fazíamo-nos forninhos (Informante, 54 anos).

As histórias contadas pelos homens vêm a asseverar a teoria de que não é a namorar à janela que os filhos incógnitos nascem e que, tal como na actualidade, relações sexuais também existiam na adolescência. Ao contrário do que acontece na modernidade, a divulgação dos meios contraceptivos não existia e, face a isso, usava-se o coito interrompido e o aborto para evitar a desonra da família. Conta-se na freguesia que há algumas décadas atrás, uma mulher solteira engravidou. Esta, procurando evitar as críticas da comunidade, ocultou a gravidez ao longo da gestação e quando deu à luz, em acto de desespero, pôs fim à vida da criança. Poucos dias depois apareceu um cão transportando um braço de uma criança na boca. O regedor da freguesia, tendo conhecimento do caso, procedeu à análise ginecológica de grande parte das mulheres da freguesia, procurando identificar qual delas teria dado à luz recentemente2.
Este comportamento é justificável do ponto de vista histórico e cultural pois, o receio sentido pela mesma fê-la crer que a única forma de evitar a condenação comunitária, pelo pecado carnal, seria a ocultação do fruto desse delito. Honório (s/d: 2) alerta-nos para o facto de devermos analisar a sexualidade como uma construção sócio-cultural pois, “a sexualidade é uma construção e como construção é historicamente determinada social e culturalmente: onde se aprendem atribuições ou significados para vivências, práticas e experiências sexuais”.
O facto da religião católica punir a sexualidade originou, entre o séc. XVI e o séc. XX, a repulsa do contacto sexual por prazer, adoptando assim uma postura de repressão e censura da sexualidade, devendo esta ser utilizada somente após o matrimónio legitimo, entre os conjugues, e tendo como objectivo a procriação. Este pensamento ainda permanece nos residentes mais velhos da freguesia que acabam por criticar a liberdade sexual existente presentemente, defendendo os princípios de que deverá permanecer um “controle social da conduta sexual feminina e uma liberdade sexual masculina” (Honório, s/d:2).
Tal como refere Simone Monteiro (in Honório, s/d:2) quando se analisam as relações entre género e a sexualidade verifica-se que as mulheres têm uma tendência para “o controle da conduta sexual, valorização da virgindade e uma ligação entre sexo e vínculo amoroso”, enquanto os homens associam a sexualidade à virilidade. Assim, a sexualidade é descrita em consonância com a “hierarquia de géneros” (Honório, s/d:2) em que, como refere Laforte (2003:201) “…a sexualidade não apenas produz um indivíduo social, mas legitima através das suas regras formas diversas de dominação masculina e desigualdade de poder”.
Face a esta dominação masculina e descriminação feminina, no passado, existia uma maior preocupação, por parte das jovens, em evitar qualquer tipo de contacto íntimo em público, de modo a fugir à difamação. Por conseguinte, as pessoas mais idosas teimam em manter uma imagem integra face ao seu passado, ocultando a existência de experiências sexuais antes do casamento e mencionando que muitas vezes o namoro era iniciado através da troca da correspondência ou aquando os trabalhos agrícolas, visto que o namoro “teria sempre ocorrido de forma espontânea, nas fainas agrárias, no cruzamento dos caminhos, intencionalmente à vista de toda a gente, ou na sombra dos arvoredos, o que teria o tom pecaminoso…” (Caldas, 1994:332).


Bibliografia:

Almeida, Susana, 2009, Vidas Vividas, Experiências Acrescidas. Arcos de Valdevez, Associação Cultural e Desportiva de Grade
Caldas, Eugénio de Castro, 1994, Terra de Valdevez e Montaria de Soajo. S/,L Editorial Verbo
Gomes, José Cândido, 1903, As terras de Valdovêz. Guimarães, Typ. Minerva Vimaranense
HONÓRIO, Maria das Dores, s/d, “Sexualidade, género e reprodução na Juventude – ST 28” [online] Disponível em (acesso em 25-07-2008)
Laforte, Ana Maria, 2003, Género e Poder entre os Tsonga de Moçambique. Lisboa, Ed. Ela por ela

Sem comentários:

Enviar um comentário